domingo, 13 de março de 2016

"se se trata, porém, de salvar a criança e de proteger o mais possível o que da criança ainda sobrou no adulto, apesar dos nossos sistemas escolares, então mais adequados estarão os artistas como criadores, por não terem tido medo da vida (...)" 

Agostinho da Silva, Textos Pedagógicos, p. 94.


sábado, 12 de março de 2016

Ser professor, hoje?
Ser professor pode assemelhar-se a um salto! A um vigoroso salto para o vácuo, no sentido em que se revela, hoje, contingente ou mesmo impossível de consumar.

Porém, este salto é também um impulso de libertação, um desejo: 
De superar barreiras, institucionais e pessoais. É a expressão de uma premente vontade de que a escola não seja mais esse espaço-tempo burocratizado, que encerra professores e alunos numa rede cerrada de obrigações e constrangimentos, que os reduz a simples rodas de uma abismal máquina.

É o sonho de uma escola que possa ser vivida: 
Como um espaço-tempo de encontros e afectos, de autonomia e interdependências, de criatividade e construção legítima da realidade, de experimentação, descoberta e aprendizagem. Uma escola, como dizia Agostinho da Silva, sem paredes, em plena inter.relação com o mundo. É a expressão do desejo de que a utopia - esse mundo ainda por fazer - se faça acção, e que ser professor seja um salto, não em vão.

sábado, 23 de março de 2013

artista-professor / professor-artista




Yves Klein na realização de Le Saut dans le vide, fotografado por Harry Shunk e John Kender, 1960.



Ao  reunir em si duas áreas distintas - a educação e a arte - o conceito de artista-professor parece um paradoxo. Todavia, como observa Zwim, o seu siginifado não se restringe à coexistência das duas profissões numa mesma pessoa, como uma dupla identidade. No que diz respeito aos seus propósitos e práticas, se considerarmos as conceções estereotipadas de uma e de outra,a actividade artística, mais espontânea e imprevista, surge mais relacionada com a realização e sucesso individual do artista, enquanto que na actividade pedagógica, mais estruturada e sistemática, os objectivos parecem estar associados ao sucesso dos alunos. Outra contradição entre arte e educação, advém do confronto entre a criatividade e instituições burocratizadas como a escola. A criatividade, pressupõe uma relação dinâmica com a realidade da qual surgem novos conhecimentos, contrariamente, na escola predomina um modelo de ensino normativo, uniformizador e disciplinador dos comportamentos humanos: todos os alunos seguem o mesmo currículo, da mesma maneira, como numa linha de montagem, e os professores são parte da engrenagem num maciço aparato burocrático (Gardner, 1991). Ao conflito entre criatividade e a instituição escola, associa-se a ideia de que a arte não pode ser ensinada, ideia expressa nomeadamente pelo crítico de arte Harold Rosenberg, segundo o qual a educação não é mais do que a prática de uma tradição e a manutenção de um status quo, da qual nada de excitante pode surgir (Daichendt, 2010, p.11) 

Para além das referidas contradições, o conceito de artista-professor, implica uma estreita relação entre os processos artísticos e os processos de ensino, entre pensamento artístico e pensamento pedagógico, sendo, mais do que a combinação entre duas profissões distintas, uma verdadeira filosofia de ensino e aprendizagem (idem, p.61). A correspondência entre ser professor e aspetos do comportamento artístico verifica-se não apenas, e  não necessariamente, no caso de artistas que também ensinam, mas também em professores de áreas não artísticas. Como observa Hausman, o conceito de artista-professor não significa que todos os artistas sejam efetivamente bons profesores, porém é certo que todos os bons professores demonstram uma considerável arte no desempenho das suas funções (1967, p. 14). Por arte de ensinar, Hausman entende o controlo qualitativo exercido por um indivíduo na organização e comunicação de determinadas ideias e sentimentos, este advém da consciência da multiplicidade de fatores envolvidos na tomada de decisões que implica uma variedade de juízos simultaneos (1967, p. 16). A designação de Hausman  aproxima-nos da noção de "professional artistry" usada por Donald Schön ao referir as competências reveladas e desenvolvidas pelos profissionais em situações de trabalho que se caracterizam  por serem únicas, incertas e de conflito (Serrazina & Oliveira, 1999, p. 3), e que exigem um diálogo constante com os dados de uma situação, a que Schön associa o conhecimento tácito e reflexão sobre açãoVerifica-se, pois, uma correspondência, um terreno comum, entre o conceito de artista-professor, relativo especificamente ao ensino artístico, e o conceito de professor-artista, referido por Hausman (1967), relativo ao ensino em geral, uma identidade comum que se carateriza pela aceitação da incerteza, a predisposição para a experimentação e descoberta, e uma ação orientada para a qualidade. Características presentes numa concepção da arte, como fenómeno aberto e metafórico, na qual as qualidades surgem necessariamente do compromisso individual na exploração da realidade, para as quais não existem formulas ou teorias absolutas (Hausman, 1967, p.14).

Uma perspetiva histórica, evidencia a interrelação entre as práticas e pensamento artístico e o seu ensino. Efland organiza o ensino artístico em quatro categorias históricas: mimética, pragmática, expressiva e formalista. A mimética concentra-se na imitação, da natureza ou modelos, como forma de aprendizagem. A pragmática valoriza a arte e a educação como áreas de conhecimento, um conhecimento construído pelo sujeito através do contato com a realidade. A categoria expressiva valoriza a afetividade do aluno, a aprendizagem é feita a partir do exercício da imaginação e da livre expressão. A formalista valoriza o sistema organizacional identificado nas obras de arte, o seu ensino baseia-se nos princípios do desenho e no domínio de vocabulário e conceitos específicos (Daichendt, 2010,p. 143).


As categorias definidas por Efland permitem identificar distintas concepções de artista-professor, observáveis, nomeadamente, nas concepções apresentadas  por Lowe (1958) e Hausman (1967). Apesar de em ambas valorizarem-se os aspetos comuns das duas atividades, a anteriormente referida afinidade em que se funda o conceito de artista-professor, distinguem-se diferentes definições das suas práticas e propósitos. Em Lowe, identifica-se uma concepção do artista-professor próxima da ideia de mestre, que ensina através do exemplo, que se enquadra na categoria mimética, e de uma concepção expressionista da arte e do seu ensino: o propósito do artista-professor é, através da sua presença e ação, contribuir para a liberdade interior e auto-conhecimento do aluno, de modo a propiciar o desenvolvimento da sua força criativa (1958, p.11). Em Hausman, parte-se da consciência de que não há modelos absolutos para arte e para o seu ensino, pelo que a concepção de artista-professor integra aspetos das quatro categorias definidas por Efland. A partir de uma perspetiva crítica relativamente à correta preparação artística e consciente da complexidade e ambiguidade dos processos artístico e pedagógico, os seus propósitos organizam-se segundo três domínios psicológicos, o cognitivo, o afetivo e o psicomotor, e visam gerar uma compreensão e conhecimento da arte em si, envolvendo para além dos aspetos formais e técnicos, históricos, sociais e culturais, o desenvolvimento nos alunos de uma predisposição para a descoberta, a par da necessária autoconfiança e autoconhecimento (Hausman, 1967).   


A consciência de que não há modelos absolutos para a arte, e consequentemente para o seu ensino, deduz-se das sucessivas transformações nas concepções e práticas artísticas protagonizadas pelas vanguardas artísticas do séc. XX, que, contrapondo-se umas às outras e excluindo-se mutuamente, constituiram-se todas elas como alternativas contrárias ao convencionalismo académico dos séculos precedentes, contribuindo, quando perspetivadas no seu conjunto, para uma compreensão mais abrangente da natureza múltipla, aberta e metafórica da arte. Consciência essa, representativa de uma mudança de paradigma, resultante da redefinição crítica dos pressupostos da Modernidade, situada cronologicamente entre o séc. XVI e XIX, especialmente da ideia de progresso como sinónimo de avanço positivo da cultura humana, e do darwinismo social. Redefinição crítica que deu lugar à descrença em qualquer sistema de valores, característica do pensamento Pós-moderno. No que diz respeito à educação artística, essa mudança traduz-se na necessidade de integrar diferentes modelos e abordagens (Daichendt, 2010; Efland, 2003; Hausman, 1967; Lowe, 1958)

As concepções de artista-professor apresentadas por Lowe e Hausman, são, portanto, representativas de duas filosofias distintas sobre a arte e educação. Lowe, ao considerar a arte e o seu ensino a partir de um modelo único, o expressionista, enquadra-se no pensamento moderno. Hausman, ao sublinhar a importância da compreensão da arte em toda a sua complexidade e ambiguidade e ao reconhecer a sua natureza aberta e plural, enquadra-se num pensamento designado de pós-moderno. A "pós-modernidade" pode caraterizar-se por uma crescente individualização das sociedades (Bauman, 2011) que acentua o seu pluralismo, verificada também na relação que se estabelece com a arte. Uma relação que tende a ser construída pelo sujeito, não definida à priori, e a envolver vários aspetos da vida e do conhecimento humano: históricos, políticos, sociais, estéticos e pessoais. O que tem consequências também para o ensino artístico, nomeadamente, como refere Efland, a exigência de integrar vários modelos e a compreensão da parte dos professores e alunos dessa mesma diversidade, das suas bases históricas e sociais (Efland, 1995).


  

Referencias bibliográficas:

Daichendt, James. (2010). Artist-Teacher: A Philosophy for Creating and Teaching. Bristol: Intellect. 

Efland, Arthur (1995). Change in the conceptions of art teaching, in Ronald W. Neperud (ed.). Context, content and community in art education: beyond post modernism, pp. 25-40. New York: Teachers College Press. 
Efland, A., Freedman, K., Stuhr, P. (2003). La educacion en la arte posmoderno. Barcelona: Paidós.
Gardner, Howard. (1991). Inteligências Múltiplas. A teoria na prática. Porto Alegre: Artes Médicas.
Hausman, J. (1967). Teacher as Artist & Artist as Teacher. Art Education, 20 (4), 13-17.
Lowe, R. (1958). The Artist-as-Teacher. Art Education, 11 (6), 10-19.
Oliveira, I & Serrazina, L. (1999). A reflexão e o professor como investigador. Universidade Aberta & Escola Superior de Educação de Lisboa: Lisboa.


domingo, 25 de novembro de 2012

Desenho, em questão.


O desenho, enquanto disciplina, tem vindo a afirmar a sua autonomia e valor próprio, não subserviente em relação a outras formas de realização artística, mantendo, todavia, uma relação indestrinçável com estas. Como evidencia Gary Garrels, o desenho permite estabelecer relações entre a imaginação e a observação, entre percepção e materialidade, entre a mente e a mão. O seu caráter provisório e exploratório, a sua relativa mobilidade e relativo escasso custo, permitem que o desenho seja o perfeito laboratório para a re-invenção de possibilidades para a arte (Garrels, 2005, p.14). Como afirma John Berger, para o artista o desenho é descoberta (cit. Garner, 2008, p.25), funciona como um catalisador de mudança, como um meio ou processo exploratório, como forma de pensamento e resolução de problemas, fornecendo a cada instante desafios e caminhos de solução (Duff, 2005, pp.2-3). 


Existem diversos modos de desenhar e de pensar o desenho. Perante a consciência dessa diversidade, visível ao longo da história da arte e de indivíduo para indivíduo, e da nossa própria experiência do desenho enquanto laboratório, através do qual novas ideias, técnicas e processos artísticos são explorados, parece-nos importante compreender e organizar essa diversidade, explorando as suas implicações relativamente a aspetos tranversais do desenho. Para suscitar essa compreensão através da própria prática do desenho, sendo este encarado como processo de exploração e descoberta, foi concebida uma sequência de exercícios que pusessem em ação diferentes concepções de desenho, constituindo uma unidade didática que designámos de Desenho em questão.

Na concepção da sequência de exercícios considerámos aspetos transversais do  desenho como: o suporte, os elementos, materiais e meios pictóricos e suas interrelações (composição), e o sujeito, produtor e leitor de processos artísticos. Procurámos, através de uma sucessão de exercícios, tornar sensíveis as transformações que ocorrem nesses aspetos nas diferentes situações de prática do desenho que os exercícios encenam. A concepção dos exercícios teve como referência os processos artísticos presentes no trabalho de artistas que protagonizaram algumas das transformações que influenciaram o modo de fazer e entender a arte, em geral, e o desenho, em particular, ao longo dos últimos séculos (ver pesquisa).  

A unidade didática, Desenho, em questão, está organizada em três sessões, de duas horas cada uma, nas quais são articuladas diferentes posturas face ao desenho. A primeira sessão intitula-se Do desenho de observação ao desenho autorreferencial, a segunda, Do signo ao vestígio, e a terceira O desenho sem papel e de novo a imagem.



Fig. 1 - Cartaz de divulgação da unidade didática Desenho, em questão.


Sessão I: do desenho de observação ao desenho autorreferencial



Em Do desenho de observação ao desenho autorreferêncial, procurou-se, através da sucessão de exercícios, fazer a transição gradual entre uma conceção de desenho baseada na relação direta com a realidade observada, cujo propósito é estabelecer uma correspondência de semelhança com essa mesma realidade, para uma conceção desenho na qual este se assume como realidade em si mesmo, ou seja, um tipo de desenho autorrefencial. A transição referida implica mudanças relativamente ao tipo de representação, oscilando entre a figuração e a abstração; à função dos elementos gráficos, ora mais descritiva, ora mais expressiva e autorreferencial; à função do papel, passando de mero suporte a  elemento pitórico; à concepção do espaço pictórico, partindo da ilusão da tridimensionalidade para afirmação da sua bidimensionalidade. O gráfico, em baixo, procura traduzir e sistematizar essas mudanças ocorridas ao longo dos exercícios. Através da diferenciação de duas zonas, associadas a aspectos distintos do desenho, que se estendem ao longo da sessão, pretende-se evidenciar a coexististência, embora com intensidades variáveis, de diferentes aspetos e concepções de desenho, chamando a atenção para ambiguidade e tensão entre concepções e práticas que o desenho comporta e cujos limites convencionais muitas vezes questiona e subverte.  


 ex.2                                   ex.3                                 ex.4                                      ex.5
Fig. 1 - Transformações ocorridas ao longo da sessão.

Legenda:
______________
Desenho a partir de um referente observado   
Figuração                                                               
Papel como suporte                                               
Elementos pictóricos descritivos                     
Ilusão de tridimensionalidade                             
______________
Desenho autorreferencial
Abstração
Papel como elemento pictórico
Elementos pictóricos expressivos
Espaço pictórico bidimensional



A sessão realizou-se numa sala preparada especificamente para a realização dos exercícios sendo disponibilizados os materiais necessários sobre as mesas, reunidas no centro da sala. Nela participaram 6 pessoas pode ser caracterizada como heterogénea em relação às idades, abrangendo pessoas entre os 18 e os 35 anos, em relação ao género, com um número equivalente de participantes do sexo feminino e masculino, em relação ao nível e formação académica, com dois participantes que se encontram a frequentar o ensino secundário na área artística, outros dois a frequentar o mestrado em Ensino das Artes Visuais, e os restantes dois sem qualquer tipo de formação artística específica e com licenciaturas na área de informática.     
  

Fig.2- Fotografia da sala onde foi realizada a sessão.



EXERCÍCIOS

Desenho Livre.

A sessão teve início com um exercício livre no qual as únicas condições impostas aos participantes foram o tempo de realização do exercício e os materiais disponibilizados. Pretendeu-se que cada um parti-se da sua relação pessoal com o desenho para uma exploração mais dirigida por diferentes modos de pensar e fazer desenho iniciada no próximo exercício.   
  
Duração: 15 min.
Materiais: Folhas A3, Grafites, Carvão, Marcadores, Lápis de Cera, Lápis de Cor, Tinta da China, Guache, Pincéis, Trinchas, Tesoura, Cola, Fios/ Linhas, Arame, Papéis.



Fig. 3 - Fotografia de um momento da realização do exercício Desenho livre



Isto é uma garrafa

No segundo exercício foi introduzido um referente comum a todos os participantes, uma garrafa com água, e foi-lhes pedido que, através do desenho, procurassem representar e caracterizar o referente. O desenho surge neste exercício como uma ferramenta de observação e análise do objeto representado, os elementos pictóricos têm uma função essencialmente descritiva, contribuindo para estabelecer uma relação de semelhança com o referente. O desenho assume assim um caráter fortemente figurativo e realista procurando contrariar a bidimensionalidade da folha através da perspetiva.   

Duração: 20 min.
Materiais: Folhas A3, Grafites, Carvão, Marcadores, Tinta da China, Guache, Pincéis, Trinchas.



Fig. 4 - Fotografia de um momento da realização do exercício Desenho de observação




Garrafa de água

No terceiro exercício manteve-se o referente e condicionou-se o controlo dos participantes sobre aquilo que desenhavam, através da estratégia do desenho cego no qual é ocultado o que é desenhado sobre o papel. Dessa forma desloca-se a atenção do resultado para o processo de correspondência entre a percepção e o gesto da mão que desenha, valorizando-se mais essa relação do que a semelhança com o referente e a implícita habilidade técnica. Nesta situação é diminuída a função descritiva dos elementos pictóricos, estes testemunhando antes a procura de correspondência entre percepção e gesto, o que permite alguma autonomização da linha e do espaço pictórico relativamente à realidade observada. 

Duração: 10 min.
Materiais: Folhas A3, Marcadores, Tinta da China, Guache, Pincéis, Trinchas.



Fig. 5 - Fotografia de um momento da realização do exercício Garrafa de água.




Sem garrafa

No quarto exercício prosseguimos pelo caminho da autonomização dos  elementos pictóricos em relação a um realismo ótico, retirando-se qualquer referente exterior ao sujeito e ao ato de desenhar. Foi sugerido aos participantes que se apropriassem da bidimensionalidade da folha, considerando-a como espaço de descoberta e exploração de eventos gráficos, como espaço de invenção. Neste exercício está implícito um tipo de representação abstrata.

Duração: 15min.
Materiais: Folhas A3, Marcadores, Tinta da China, Guache, Pincéis, Trinchas.


Fig. 6 - Fotografia de um momento da realização do exercício Sem garrafa.




No espaço pictórico

No quinto exercício coloca-se aos participantes o desafiado de desenharem tendo como único material a folha de papel. Pretende-se assim suscitar a exploração da superfície do papel enquanto espaço e elemento pictórico, mas também enquanto único material através do qual o desenho ganha existência. Neste exercício o desenho baseia-se numa relação mais direta e física entre o sujeito e a superfície de papel. 

Duração: 15 min.
Materiais: Folhas A3.


Fig. 7 - Fotografia de um momento da realização do exercício No espaço pictórico.



Reflexão e diálogo em grupo.



Após a realização dos exercícios foi proposto aos participantes um momento de dálogo e reflexão  sobre as transformações ocorridas ao longo dos exercícios  relativamente aos diferentes tipos de desenho abordados, seus propósitos, tipos de representação e função dos elementos pictóricos; e relativamente ao seu papel e presença dos participantes enquanto sujeitos do desenho. 


Duração: 20 min.





Sessão II: do signo à marca ou vestígio.


Na segunda sessão, a par da dicotomia entre desenho referencial e autorreferencial, abordada na sessão anterior, são exploradas, no que diz respeito ao papel do sujeito que desenha, as  noções de desenho como ato transitivo e intransitivo. A primeira envolve uma intencionalidade do sujeito, este é o impulsionador do desenho, e o desenho é o produto e propósito da atividade, por exemplo: representar a ideia de garrafa de água. Na segunda, a ação pretende-se não intencional, o sujeito passa a ser o meio através do qual o desenho se manifesta, sendo a atenção deslocada do propósito da atividade, para a atividade em si, ou seja para o processo, veja-se por exemplo a série Blind Time Drawings do artista Robert Morris (ver pesquisa de trabalhos artísticos aqui). Associadas a estas duas noções estão também os conceitos de signo e vestígio. O signo, no que diz respeito às artes, envolve um processo de significação intencional que tende a ser excluído no caso do vestígio. Enquanto rasto de uma ação o vestígio mostra-nos a atividade em si e não o propósito da atividade (Alfhen, 2008, pp. 61-67). 

À semelhança da sessão anterior, o gráfico em baixo pretende ilustrar as variações, relativamente a diferentes conceções de desenho, que foram provocadas ao longo da sessão pelas situações específicas que cada exercício convoca, evidenciando, mais uma vez, a coexistência de determinados aspetos. Como é visível no gráfico, ao longo da sessão são explorados aspectos opostos do desenho, que num extremo e outro tendem a evidenciar-se mas não se excluem necessariamente. 



ex.1                                   ex.2                                 ex.3                                      ex.4
Fig. 8 - Transformações ocorridas ao longo da sessão.

Legenda:
______________
Signo   
Referencial
Representação
Transitivo 
Representação                         
______________
Vestígio
Autorreferencial
Apresentação
Intransitivo
Ação


A sessão realizou-se na mesma sala que a sessão anterior, foram no entanto retiradas grande parte das mesas para que pudéssemos usar o chão, devidamente coberto de papel cenário, como espaço pictórico. A sessão contou com mais participantes, um total de nove, na sua maioria jovens, com idades entre os 18 e os 19 anos, estudantes do ensino secundário do curso Científico-Humanístico de Artes Visuais, constando também três adulto, com idades na casa dos trinta anos, duas estudantes do Mestrado em Ensino das Artes Visuais e um pessoa sem formação artística e com formação superior na área de informática. 
Ao contrário da sessão anterior, optámos por criar momentos de reflexão e diálogo entre os exercícios e não apenas no final, aproveitando o fato das memórias, sensações e ideias suscitadas pelos exercícios estarem mais presentes, o que facilitou o diálogo sobre as mesmas. 


EXERCÍCIOS:

Isto não é uma garrafa.


No primeiro exercício da segunda sessão foi evocado o referente da sessão anterior, tendo sido pedido aos participantes que representassem a sua ideia de garrafa de água. Pretende-se que os participantes se confrontem com a diferença entre desenho de observação, no qual a mão é dirigida pela percepção no tempo (Alfhen, 2008, p. 62),  e o desenho de uma ideia, no qual a mão é dirigida por uma memória ou ideia geral a respeito do referente, tanto no que diz respeito ao processo como ao resultado. 
No final do exercício foi introduzida uma reflexão a propósito do seu título, Isto não é uma garrafa, uma referência a Ceci n'est pas un pipe de René Magritte (ver pesquisa de trabalhos artísticos aqui), através da qual se procurou evidenciar a distinção e correspondência entre o referente garrafa e a representação da ideia de garrafa, e introduzir a noção de autorreferencialidade, segundo a qual o desenho se apresenta como realidade em si mesmo. 

Duração: 15 min.
Materiais: Folhas A3, Grafites, Marcadores. 




Fig. 9 - Mesa de trabalho durante a realização do exercício Isto não é uma garrafa.





Ao som da água


No segundo exercício, foi sugerido aos participantes que procurassem interpretar, através de um desenho mais gestual e abstrato, o som da água escutado ao longo do exercício. O exercício foi realizado sobre uma folha de papel cenário colocada no chão, em torno da qual os participante se posicionaram, e com os olhos vendados. Ao anular-se a presença da percepção visual, pretendemos, por um lado, promover uma maior concentração na percepção do som e da tensão gerada pelo contacto do material riscador com a superfície do papel, e por outro, reduzir o controlo do sujeito sobre o que é desenhado, abrindo dessa forma espaço para o acidental e o inesperado, e limitar a tendência para a representação de imagens, de figuras, que os participantes pudessem relacionar com o que ouviam. 

Neste exercício pretendemos que os participantes abordassem o desenho como experiência intelectual e sensual, não descritiva e autorreferencial, no qual a linha torna-se um prolongamento do corpo e mente do sujeito. Ao diminuir-se o controlo do sujeito sobre o resultado, sobre o produto da ação, procura-se valorizar o processo que lhe dá existência. Foi pedido aos participantes que desenhassem o invisível procurando afastar-se de um tipo de representação figurativa. 

Após a realização do exercício houve um momento de diálogo, reflexão e partilha sobre a experiência dos participantes e as concepções de desenho suscitadas pelo exercício. Em geral foi expresso pelos participantes a dificuldade em se afastarem de um desenho baseado diretamente na percepção visual, encontrando-se presentes nos registos realizados relações com imagens visuais sugeridas pelos sons.     


Duração: 15 min. 
Materiais: Papel de cenário, Marcadores, Tinta da China, Guache, Pincéis, Trinchas. 












Figs. 10, 11 e 12 - Registos fotográficos do decorrer do exercício Ao som da água




Fig. 13 - Registo fotográfico do resultado do exercício Ao som da água, um desenho no qual todos participaram.




Quem está a desenhar? 



No terceiro exercício pretendemos levar mais longe a limitação do controlo do sujeito sobre o que é desenhado, radicalizando a sua não intencionalidade e tornando ambígua a autoria do desenho. O exercício foi realizado sobre uma folha de papel cenário colocada sobre o chão. Os participantes foram divididos em dois grupos. Aos elementos de um dos grupos foi pedido que, de olhos vendados, se movimentassem sobre a folha, enquanto os elementos do outro grupo, e sem que os outros soubessem, procuravam registar esses movimentos. O desenho que resulta do registo da ação, fazendo coincidir processo e resultado, não é intencionalmente feito nem controlado por ninguém, a presença, expressão e autoridade do sujeito é, assim, quase excluída. Quase, pois cada participante movimentou-se sobre a folha de um modo particular, e cada participante registou o movimento, também, de um modo particular.
No final do exercício a reflexão conjunta fez-se em torno da questão presente no título do exercício, sobre a autoria do desenho. Visto que nenhum dos participantes teve um total controlo sobre o que foi desenhado, pode-se afirmar que nenhum foi realmente o seu autor.      

Duração: 30 minutos. 

Materiais: Papel de cenário, Tinta da China, Guache, Pincéis, Trinchas. 












Figs. 14 e 15 - Registo fotográfico de dois momentos do exercício Quem está a desenhar?.





Travessia 

No último exercício continuámos a exploração de um desenho fundado na relação estreita entre processo e resultado, entre a materialização e a ação ou performance do sujeito, mas criando uma zona de ambivalência em relação à intencionalidade ou não do sujeito. O exercício foi mais uma vez realizado sobre uma folha de papel cenário colocada sobre o chão. Foi pedido aos participantes que se posicionassem em torno da folha e colocado o desafio de atravessarem o espaço da folha até à extremidade oposta com a condição de só se poderem movimentar "desenhando" sobre esta. Cria-se assim uma tensão, uma ambiguidade relativamente à intencionalidade do sujeito, sendo convocada a sua capacidade inventiva que faz da travessia mais do que uma travessia, um pretexto para a invenção, intervenção e interação gráfica, como forma de fazer e conceber o desenho.    
No final do exercício procurou-se através do questionamento suscitar a reflexão sobre o modo como os participantes responderam ao desafio. Observou-se que cada participante fez mais do que atravessar a folha, aproveitando o pretexto da travessia para preencher a folha com sinais e marcas, desta vez, mais intencionais. Foi também abordada a autoreferencialidade do desenho em contraste, num olhar retrospetivo, com o tipo de desenho referencial abordado nos dois primeiros exercícios da sessão.  

Duração: 30 m
Materiais: Papel de cenário, Grafites, Marcadores, Tinta da China, Guache, Pincéis, Trinchas, objectos, fita adesiva. 












Figs. 16, 17 e 18 - Registos fotográficos da realização do exercício Travessia.