sábado, 23 de março de 2013

artista-professor / professor-artista




Yves Klein na realização de Le Saut dans le vide, fotografado por Harry Shunk e John Kender, 1960.



Ao  reunir em si duas áreas distintas - a educação e a arte - o conceito de artista-professor parece um paradoxo. Todavia, como observa Zwim, o seu siginifado não se restringe à coexistência das duas profissões numa mesma pessoa, como uma dupla identidade. No que diz respeito aos seus propósitos e práticas, se considerarmos as conceções estereotipadas de uma e de outra,a actividade artística, mais espontânea e imprevista, surge mais relacionada com a realização e sucesso individual do artista, enquanto que na actividade pedagógica, mais estruturada e sistemática, os objectivos parecem estar associados ao sucesso dos alunos. Outra contradição entre arte e educação, advém do confronto entre a criatividade e instituições burocratizadas como a escola. A criatividade, pressupõe uma relação dinâmica com a realidade da qual surgem novos conhecimentos, contrariamente, na escola predomina um modelo de ensino normativo, uniformizador e disciplinador dos comportamentos humanos: todos os alunos seguem o mesmo currículo, da mesma maneira, como numa linha de montagem, e os professores são parte da engrenagem num maciço aparato burocrático (Gardner, 1991). Ao conflito entre criatividade e a instituição escola, associa-se a ideia de que a arte não pode ser ensinada, ideia expressa nomeadamente pelo crítico de arte Harold Rosenberg, segundo o qual a educação não é mais do que a prática de uma tradição e a manutenção de um status quo, da qual nada de excitante pode surgir (Daichendt, 2010, p.11) 

Para além das referidas contradições, o conceito de artista-professor, implica uma estreita relação entre os processos artísticos e os processos de ensino, entre pensamento artístico e pensamento pedagógico, sendo, mais do que a combinação entre duas profissões distintas, uma verdadeira filosofia de ensino e aprendizagem (idem, p.61). A correspondência entre ser professor e aspetos do comportamento artístico verifica-se não apenas, e  não necessariamente, no caso de artistas que também ensinam, mas também em professores de áreas não artísticas. Como observa Hausman, o conceito de artista-professor não significa que todos os artistas sejam efetivamente bons profesores, porém é certo que todos os bons professores demonstram uma considerável arte no desempenho das suas funções (1967, p. 14). Por arte de ensinar, Hausman entende o controlo qualitativo exercido por um indivíduo na organização e comunicação de determinadas ideias e sentimentos, este advém da consciência da multiplicidade de fatores envolvidos na tomada de decisões que implica uma variedade de juízos simultaneos (1967, p. 16). A designação de Hausman  aproxima-nos da noção de "professional artistry" usada por Donald Schön ao referir as competências reveladas e desenvolvidas pelos profissionais em situações de trabalho que se caracterizam  por serem únicas, incertas e de conflito (Serrazina & Oliveira, 1999, p. 3), e que exigem um diálogo constante com os dados de uma situação, a que Schön associa o conhecimento tácito e reflexão sobre açãoVerifica-se, pois, uma correspondência, um terreno comum, entre o conceito de artista-professor, relativo especificamente ao ensino artístico, e o conceito de professor-artista, referido por Hausman (1967), relativo ao ensino em geral, uma identidade comum que se carateriza pela aceitação da incerteza, a predisposição para a experimentação e descoberta, e uma ação orientada para a qualidade. Características presentes numa concepção da arte, como fenómeno aberto e metafórico, na qual as qualidades surgem necessariamente do compromisso individual na exploração da realidade, para as quais não existem formulas ou teorias absolutas (Hausman, 1967, p.14).

Uma perspetiva histórica, evidencia a interrelação entre as práticas e pensamento artístico e o seu ensino. Efland organiza o ensino artístico em quatro categorias históricas: mimética, pragmática, expressiva e formalista. A mimética concentra-se na imitação, da natureza ou modelos, como forma de aprendizagem. A pragmática valoriza a arte e a educação como áreas de conhecimento, um conhecimento construído pelo sujeito através do contato com a realidade. A categoria expressiva valoriza a afetividade do aluno, a aprendizagem é feita a partir do exercício da imaginação e da livre expressão. A formalista valoriza o sistema organizacional identificado nas obras de arte, o seu ensino baseia-se nos princípios do desenho e no domínio de vocabulário e conceitos específicos (Daichendt, 2010,p. 143).


As categorias definidas por Efland permitem identificar distintas concepções de artista-professor, observáveis, nomeadamente, nas concepções apresentadas  por Lowe (1958) e Hausman (1967). Apesar de em ambas valorizarem-se os aspetos comuns das duas atividades, a anteriormente referida afinidade em que se funda o conceito de artista-professor, distinguem-se diferentes definições das suas práticas e propósitos. Em Lowe, identifica-se uma concepção do artista-professor próxima da ideia de mestre, que ensina através do exemplo, que se enquadra na categoria mimética, e de uma concepção expressionista da arte e do seu ensino: o propósito do artista-professor é, através da sua presença e ação, contribuir para a liberdade interior e auto-conhecimento do aluno, de modo a propiciar o desenvolvimento da sua força criativa (1958, p.11). Em Hausman, parte-se da consciência de que não há modelos absolutos para arte e para o seu ensino, pelo que a concepção de artista-professor integra aspetos das quatro categorias definidas por Efland. A partir de uma perspetiva crítica relativamente à correta preparação artística e consciente da complexidade e ambiguidade dos processos artístico e pedagógico, os seus propósitos organizam-se segundo três domínios psicológicos, o cognitivo, o afetivo e o psicomotor, e visam gerar uma compreensão e conhecimento da arte em si, envolvendo para além dos aspetos formais e técnicos, históricos, sociais e culturais, o desenvolvimento nos alunos de uma predisposição para a descoberta, a par da necessária autoconfiança e autoconhecimento (Hausman, 1967).   


A consciência de que não há modelos absolutos para a arte, e consequentemente para o seu ensino, deduz-se das sucessivas transformações nas concepções e práticas artísticas protagonizadas pelas vanguardas artísticas do séc. XX, que, contrapondo-se umas às outras e excluindo-se mutuamente, constituiram-se todas elas como alternativas contrárias ao convencionalismo académico dos séculos precedentes, contribuindo, quando perspetivadas no seu conjunto, para uma compreensão mais abrangente da natureza múltipla, aberta e metafórica da arte. Consciência essa, representativa de uma mudança de paradigma, resultante da redefinição crítica dos pressupostos da Modernidade, situada cronologicamente entre o séc. XVI e XIX, especialmente da ideia de progresso como sinónimo de avanço positivo da cultura humana, e do darwinismo social. Redefinição crítica que deu lugar à descrença em qualquer sistema de valores, característica do pensamento Pós-moderno. No que diz respeito à educação artística, essa mudança traduz-se na necessidade de integrar diferentes modelos e abordagens (Daichendt, 2010; Efland, 2003; Hausman, 1967; Lowe, 1958)

As concepções de artista-professor apresentadas por Lowe e Hausman, são, portanto, representativas de duas filosofias distintas sobre a arte e educação. Lowe, ao considerar a arte e o seu ensino a partir de um modelo único, o expressionista, enquadra-se no pensamento moderno. Hausman, ao sublinhar a importância da compreensão da arte em toda a sua complexidade e ambiguidade e ao reconhecer a sua natureza aberta e plural, enquadra-se num pensamento designado de pós-moderno. A "pós-modernidade" pode caraterizar-se por uma crescente individualização das sociedades (Bauman, 2011) que acentua o seu pluralismo, verificada também na relação que se estabelece com a arte. Uma relação que tende a ser construída pelo sujeito, não definida à priori, e a envolver vários aspetos da vida e do conhecimento humano: históricos, políticos, sociais, estéticos e pessoais. O que tem consequências também para o ensino artístico, nomeadamente, como refere Efland, a exigência de integrar vários modelos e a compreensão da parte dos professores e alunos dessa mesma diversidade, das suas bases históricas e sociais (Efland, 1995).


  

Referencias bibliográficas:

Daichendt, James. (2010). Artist-Teacher: A Philosophy for Creating and Teaching. Bristol: Intellect. 

Efland, Arthur (1995). Change in the conceptions of art teaching, in Ronald W. Neperud (ed.). Context, content and community in art education: beyond post modernism, pp. 25-40. New York: Teachers College Press. 
Efland, A., Freedman, K., Stuhr, P. (2003). La educacion en la arte posmoderno. Barcelona: Paidós.
Gardner, Howard. (1991). Inteligências Múltiplas. A teoria na prática. Porto Alegre: Artes Médicas.
Hausman, J. (1967). Teacher as Artist & Artist as Teacher. Art Education, 20 (4), 13-17.
Lowe, R. (1958). The Artist-as-Teacher. Art Education, 11 (6), 10-19.
Oliveira, I & Serrazina, L. (1999). A reflexão e o professor como investigador. Universidade Aberta & Escola Superior de Educação de Lisboa: Lisboa.