quinta-feira, 16 de agosto de 2012































Este é um manifesto sem palavras composto por imagens. Que cada um ilumine os seus sentidos e em conjunto se opere a expansão do universo! 


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quarta-feira, 15 de agosto de 2012





"Põe-se naturalmente para o educador o problema de preparar desde a escola o cidadão que as circunstâncias reclamam, dando-lhe ao mesmo tempo todas as faculdades de iniciativa necessárias para que o mundo não pare e para que o indivíduo seja, não uma simples roda de máquina, não o passivo aceitador de tudo o que existe, mas em todas as suas actividades um homem desejoso de novos horizontes."

Agostinho da Silva, in "Textos Pedagógicos", 2000, p.235.

narrativa auto-boigráfica



O relato da história de vida pessoal envolve um olhar para aquilo que fomos contextualizado por aquilo que somos no presente momento em que fazemos esse exercício de escuta. Múltiplas narrativas podem surgir em cada momento de escuta interior, consoante aquilo que nos surge, a cada momento, como mais significativo, consoante, também, o que o nosso inconsciente revelar ou desvelar.
Organizei a narrativa por quadros temáticos, imagens que focam aspectos de momento mais importantes e significativos para mim, tendo em conta o contexto em que a narrativa é pedida. A cada quadro corresponde um texto, mas um não é a tradução do outro, texto e imagem contribuem da sua forma para contar esta história.




QUEM SOU...



... ou vou sendo a cada instante, sucede daquilo que fui sendo desde o momento em que nasci. 


A partir do que vou vivendo vai-se construindo, transformando e desvelando a identidade que sou, essa existência em potência que necessita de encontrar a(s) sua(s) forma(s) de ser. 




MUITO DO QUE SOU...



... provém daqueles de quem nasci, os meus pais, os pais deles, os pais dos pais deles. Fiquemos pelos meus pais pois é complexa a minha asscendência principalmente da parte paterna, envolta em indefinições que necessitariam de mais tempo para clarificar. O que sei é que provenho de mais nacionalidades que a portuguesa.
Os meus pais, tal como o meu irmão, nasceram em Angola, ex-colónia portuguesa. País que sonhavam livre e que a guerra e a doença levou-os a abandonar e a construir uma nova vida de mãos quase vazias num país ao qual não sentiam pertencer. Dos meus pais herdei para além do corpo que habito esse sentimento por vezes angustiante de ser desenraizada mas também a coragem de recomeçar. 


CRESCI...




... entre histórias e sabores dum país distante que 27 anos de guerra civil e  consequente destruição e sofrimento faziam sentir perdido, um país que já não era o que fora para aqueles que as contavam, não por um qualquer orgulho ferido de ex-colono que os meus pais não sentiam ser, pois afirmavam-se, ao contrário de outros familiares, como angolanos e não como colonos portugueses, mas antes pela transfiguração dos escombros e da fome sofrida pela terra e as gentes que amavam. 


EM ESTREITA COMPANHIA... 


  
..., desde o meu estado embrionário, da minha irmã Catarina, lado a lado vivemos quase todos os momentos da nossa vida até à entrada na faculdade levar-nos para cidades diferentes e distantes que procurei mesmo assim aproximar com visitas regulares às Caldas da Rainha. Ao longo do nosso crescimento desenvolvemos uma relação muito próxima, uma quase simbiose: funcionávamos em complementaridade colmatando as falhas ou dificuldades uma (d)à outra. A separação, apesar de difícil, foi importante, permitiu-nos ser mais completamente nós próprias, ultrapassar as dificuldades e perceber que a distância permitia uma outra proximidade.


NA EDUCAÇÃO ESCOLAR...



... cedo fui confrontada com o constrangimento imposto por uma pesada tradição escolar que remontava ao período do Estado Novo. Tenho a memória de se encontrar pendurado numa das paredes da sala destinada aos alunos da 3ª e 4ª classe um retrato de Salazar. Constrangimento simbolizado pela bata azul escura vestida todas as manhãs sob o pretexto de uma aparente igualdade traída pelo tratamento diferenciado que era dado às crianças conforme a posição social dos pais. Ficámos dois anos nessa escola mais por questões de necessidade: no Externato Dª Ana passávamos a manhã e a tarde ao contrário do que acontecia na escola pública onde estudara o meu irmão, como não tínhamos nenhum adulto com quem ficar, aquela parecia ser a melhor solução. Felizmente os meus pais perceberam que aquele não era um bom lugar para nós, tanto pelos relatos que fazíamos da forma como algumas crianças eram tratadas como por situações que a minha mãe presenciara quando ia-nos buscar, nomeadamente a típica humilhação que se praticava quando alguém não sabia a tabuada de cor: a turma em uníssono a gritar BURRA apontando para uma criança no canto da sala com orelhas de burro feitas em cartolina na cabeça. 
A mudança de escola aliviou o constrangimento mas não o eliminou, de quando em quando lá surgia, ora revelando-me a arbitrariedade dos comportamentos humanos que levavam-me, mais do que respeitar, a temer grande parte professores, ora fazendo-me desejar o retorno aos momentos mais... livres (?), as tardes passadas a correr e a brincar no pinhal. 
Apesar desse sentimento gostava da escola, não só porque podia fazer amizade com outras crianças mas principalmente porque gostava de aprender. Em casa com a minha irmã fazíamos de conta que estávamos na escola, era uma das nossa brincadeiras, numa escola onde não se tratavam mal as crianças e onde se aprendia não por obrigação mas por gosto, onde, para além de escrever e fazer contas faziam-se desenhos, muitos desenhos, desenhos que contavam histórias. O meu irmão aproveitava o nosso gosto pela escola e pedia-nos para ajuda-lo nos trabalhos de casa mais simples, nós claro ficávamos muito contentes porque tínhamos oportunidade de fazer exercícios dos alunos mais velhos! 




... cedo percebi o que queria ser quando crescesse: poder continuar a fazer aquilo que mais gostava de fazer, desenhar e pintar. Com onze e doze anos fazia-o já de uma forma metódica, dedicava muitas horas a desenhar, tanto situações imaginadas como imagens, na sua maioria de pessoas. Guardava os desenhos que fazia, assinados e com data, numa pasta verde. 
Quando tive de escolher uma área de estudos, na passagem para o então 9º ano de escolaridade, não foi difícil: com toda a convicção e alegria, ARTES! 
Na escola onde estudava no 9º ano não havia muitas condições para o ensino das artes, mesmo assim e por mérito e dedicação da professora tivemos a oportunidade de pintar azulejos. Perante o interesse e aptidões que tanto eu como a minha irmã demonstrávamos a professora aconselhou os meus pais a matricularem-nos numa escola especificamente de ensino artístico quando transitássemos para o 10º ano: a escola secundária de ensino artístico António Arroio.
E assim foi...
A mudança teve um sabor a libertação! Libertação do mundo limitado e desinteressante em que vivia e que por aquela altura começava a sufocar-me. Sentia uma urgente necessidade de alargar os meus horizontes. Dizia repetidamente para mim mesma "o mundo não é só isto, o mundo não é só isto..."
Foram os três anos de escola mais felizes da minha vida, mais ricos em aprendizagens e relacionamentos humanos, simbolizados pela imagem atrás apresentada: "AMO-TE", com o A de anarquia, escrito, ainda hoje, na fachada da escola sobre a porta, é a palavra exacta para representar o espírito que se vivia naquela escola,  dos professores aos alunos.




A entrada na Faculdade de Belas Artes de Lisboa, ambicionada por quase todos os meus amigos e colegas da António Arroio, coincidiu com a separação entre mim e a minha irmã, a Catarina tinha conseguido vaga na Escola Superior de Tecnologia, Gestão, Arte e Design das Caldas da Rainha. Foram dois momentos de mudança com um forte impacto sobre mim, combinados acentuaram a dificuldade em geri-los. 
Um dos sentimentos que consigo reconhecer dos primeiros anos de faculdade é o de desilusão: a minha expectativa em relação à Faculdade era alta, relacionava-a com investigação, com aprofundar de conhecimentos, com o questionar, com autonomia para fazer escolhas e poder reflectir sobre elas com o apoio dos professores que imaginava, inspirada pelas experiências que tivera na António Arroio, mais próximos. 
O que encontrei não era muito diferente do ensino secundário, não havia muito espaço para o pensamento, para o questionar, o conhecimento era essencialmente transmitido como um dado adquirido. Raramente se estabelecia o diálogo entre professor e aluno, estava sempre subjacente uma hierarquia intelectual, ao professor cabia falar e ao aluno escutar. Raramente numa aula foram discutidos conceitos, ideias ou perspectivas, só com alguns poucos professores isso acontecia. Fora das aulas o cenário era em geral o mesmo, o espírito de partilha e diálogo que animava os corredores da António Arroio não se encontrava nos corredores das Belas Artes, salvo raras excepções. 
Tanto quanto possível procurei fazer o meu caminho cruzando-o o mais possível com outros caminhos. Reflectia e procurava perceber o que fazia o que me levava a argumentar com os professores quando faziam comentários com os quais não concordava, e não porque desvalorizasse o que diziam mas porque também eu pensava e julgava importante partilhar aquilo que pensava para através do diálogo poder-se gerar uma mais abrangente compreensão do que estava a ser comentado. Parecia-me ser um processo natural de aprendizagem, através do diálogo, da discussão de ideias, mas todavia, este não era, ali, muito praticado.  



DESDE A ADOLESCÊNCIA...





... fui construindo o meu imaginário,  a minha compreensão pessoal do mundo, da realidade que me rodeava, posicionando-me re-posicionando-me perante vários aspectos da vida. Primeiro a literatura, mais tarde o cinema, contribuíram muito para esse processo de construção pessoal. Nós não tínhamos uma biblioteca em casa onde pudéssemos encontrar livros e deixar-nos conduzir pela curiosidade, mas à medida que fomos crescendo a minha mãe foi comprando alguns livros que achava importantes para a nossa formação e outros que o meu irmão pedia, graças a ele acabei por ter contacto com poetas, escritores e filósofos mais marginais, que de certa forma contribuíram para a formação de uma consciência mais crítica. Aquilo que lia e pensava estava sempre muito presente no meu dia a dia, influenciava a minha forma de estar na vida, as escolhas que fazia, aquilo que procurava. As conversas no café com a Rita e a minha irmã: liamos poesia no café, conversávamos sobre o sentido que então dávamos à vida, sobre o que sonhávamos, mostrávamos desenhos e a Rita coisas que escrevia. A convivência que mantínhamos, e continuámos a manter mesmo quando fomos estudar para Lisboa, era como um oásis no deserto "cultural" do Cacém.
O primeiro livro que me marcou de forma significativa e que influenciou escolhas importantes na minha adolescência, ajudando-me a tornar-me mais consciente da realidade e por isso mais responsável, foi Os Filhos da Droga, de Christiane F.. Cru relato, na primeira pessoa, da vida de uma adolescente que com treze anos cai no submundo da droga e da prostituição. Recordo estar a passear junto à escola primária e imaginar vivamente, influenciada pela leitura dos relatos da adolescente, o que seria acordar de manhã e precisar de consumir uma substancia para não sentir fisicamente dor. Essa necessidade significava para mim uma asfixiante falta de liberdade, pensava eu ao descer a rua, não vou por aí! Essa convicta consciência, esse desejo de liberdade, permitiu-me optar. Na minha adolescência o contacto com drogas como a heroína estava ao virar da esquina, alguns amigos e conhecidos viraram na esquina e seguiram de olhos bem fechados pelo labirinto de si próprios.



  A CONDIÇÃO HUMANA... 




... a(s) existência(s) humana(s), o ser, o poder, o político, o desconhecido, entre outras questões, estão desde cedo presentes na forma como me relaciono com a arte, a própria acção de criar algo está para mim impregnada dessas questões, desse mistério paradoxal que é a condição de ser humano/a da qual a arte parece ser a mais aguda manifestação. 



UMA OUTRA FORMA DE SER ARTISTA...





Tanto a educação, a política como a sociedade podem ser entendidas como construções, como formas de construir e organizar a vida humana. A forma como pensamos e agimos nas várias dimensões da vida, se criativa e por isso transformadora, por oposição a reprodutora e mecânica, pode ser entendida como arte, num sentido ampliado do conceito de arte, ou como propunha Beuys, escultura. Escultura social, participando da produção e transformação do tecido social. Tanto a educação como a política são meios fundamentais para a construção e organização das sociedades, são por isso meios privilegiados para a sua transformação, transformação desejada por uma certa tradição humanista e romântica de artistas com a qual me identifico. 
Em 2006 tive a oportunidade de começar a pôr em acção estas ideias e formas de entender principalmente a arte e a educação, entendida também ela num sentido ampliado que transcende a educação escolar e que vai de encontro às propostas de John Dewey, segundo as quais o próprio processo de convivência, quando movido por um interesse assente na relação, é educativo. Colaborei enquanto formadora de artes plásticas em dois projectos de intervenção social e comunitária com a Associação de Intervenção Social e Comunitária Crescer na Maior, no Centro Ocupacional/Ludoteca localizado num dos bairros sociais que alojou os moradores do antigo Casal Ventoso. Um dos projectos era direccionado para população adulta, na sua maioria sem abrigo e com problemáticas relacionadas com a toxicodependência, o outro para crianças e jovens em risco moradores no Vale de Alcântara. Em ambos os projectos procurei, partindo da relação com cada contexto específico, criar situações, actividades, que promovessem a iniciativa individual e a acção criativa, bem como o estar e o agir em conjunto de uma forma saudável e construtiva, como foi o caso do projecto de pintura mural realizado no Bairro Quinta do Cabrinha, projecto que envolveu de forma espontânea tanto as crianças e jovens do bairro como alguns moradores, projecto que teve um impacto positivo na vida do bairro.   
Com a Associação Crescer Na Maior tive a oportunidade de trabalhar em equipa com profissionais na sua maioria ligados à área da psicologia, onde cada um era chamado a dar o seu contributo para a resolução de problemas concretos que surgiam do trabalho que desenvolvíamos com cada população. Cada problema, situação ou projecto era discutido em equipa durante reuniões que fazíamos semanalmente. Uma forma de trabalho com qual me identifico e que julgo mais eficaz, apesar das dificuldades que as relações e a comunicação entre indivíduos acarreta, e que faria sentido em contexto escolar. É exemplo disso o trabalho colectivo entre professores, alunos e comunidade, desenvolvido à mais de duas décadas na Escola Ponte, escola que tive o prazer, em conjunto com a Elisa,  de visitar no passado ano. O trabalho que tive a oportunidade de desenvolver de forma conjunta com a equipa e direcção da Crescer Na Maior foi das experiências profissionais mais gratificantes e exigentes que tive até hoje, tanto pelas populações em causa como pela natureza colectiva do trabalho. Um dos aspectos que saliento foi o da abertura e compreensão em relação à natureza do projectos que fui propondo que transcendiam a convencional manualidade a que se restringem muitas vezes as actividade ocupacionais. 
A educação em relação com intervenção social são campos de acção que me interessam explorar profissionalmente pelos contributos directos que podem proporcionar a pessoas concretas e consequentemente à sociedade, segundo uma linha de pensamento e acção enquadrada numa concepção da educação para a autonomia e emancipação do indivíduo, da qual depende uma verdadeira democracia. 


segunda-feira, 13 de agosto de 2012


"Enlightenment is man’s release from his self-incurred tutelage. Tutelage is man inability to make use of his understanding without direction from another. Self incurred is this tutelage when its cause lies not in lack of reason but in lack of resolution and courage to use it without direction from another.”

Immanuel Kant

segunda-feira, 6 de agosto de 2012

"não sou nada" - proposta de unidade didáctica





Objecto-poema a ser intervencionado, constituído por uma caixa de cartão aberta de um dos lados e a primeira estrofe do poema "Tabacaria" de Álvaro de Campos. 



CONTEXTUALIZAÇÃO:

Para a apresentação do relato de uma unidade didáctica propus aos meus colegas e professora a realização da actividade "não sou nada" que concebera em 2009 como dinâmica de grupo para o contexto específico do Centro Ocupacional da Associação de Intervenção Social e Comunitária Crescer na Maior. Centro frequentado na sua maioria por uma população sem abrigo e com problemáticas relacionadas com a toxicodependência. 

No seu contexto original a actividade integrava um série de dinâmicas de grupo de carácter artístico que pretendiam suscitar nos participantes formas de estar e agir mais construtivas e criativas, procurando dessa forma potencializar a mudança de comportamentos, a melhoraria da auto-estima e auto-representação dos participantes bem como da relação inter-pessoal entre estes, tendo, por isso, objectivos pedagógicos e terapêuticos, na medida em que pretendia promover o auto-conhecimento, desenvolver competências pessoais e sociais e ampliar e enriquecer as experiências e pensamentos dos participantes. A actividade foi realizada individualmente, ou seja, cada participante intervinha individualmente sobre o objecto-poema. 

A actividade é composta por duas fases distintas, a primeira de realização ou produção, com a duração de quarenta a sessenta minutos, e a segunda  de partilha, diálogo e reflexão colectiva sobre os trabalhos realizados, com a duração de mais ou menos trinta minutos. 


REGISTO DA ACTIVIDADE:

Na presente versão da actividade, tal como na realizada anteriormente, os participantes foram convidados a intervir em conjunto, recorrendo a vários materiais disponibilizados, sobre o objecto-poema: caixa de dimensão média em cujo interior apenas se encontra numa folha colada no seu fundo a primeira estrofe do poema Tabacaria, de Álvaro de Campos, heterónimo de Fernando Pessoa: Não sou nada. / Nunca serei nada. / Não posso querer ser nada. À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo. 

No início da actividade foi pedido aos participantes que interviessem da forma que entendessem tendo em conta o objecto-poema, que partissem de uma relação com este, do que este suscitava em si próprios procurando agir criativamente sobre ele, transformando-o.  

Sendo a actividade realizada em grupo, exigia uma maior ou menor concertação entre as participantes. De forma espontânea surgiu  a necessidade de comunicarem as suas ideias, de pensarem em conjunto formas de intervir, de chegarem a acordo e agirem para um mesmo fim (colectivo) a partir da articulação dos diferentes contributos individuais. Cada participante, a seu tempo, foi encontrando a sua forma individual de contribuir para a transformação do objecto-poema. A forma como cada elemento conseguiu interagir com os outros e o grau de coesão do grupo pode ser um aspecto a ser analisado pelo dinamizador e participantes. Na situação em causa verificou-se, sem que de uma forma geral se perdesse a iniciativa individual, um esforço de articulação entre os participantes, de ideias e mesmo de tarefas. 










O objecto-poema após a intervenção das participantes:










A caixa manteve o seu formato, mas o vazio do objecto-poema, que é também a possibilidade de tudo como sugere o último verso do excerto do poema, deu lugar a uma trama de significados, interpretações, mensagens, sonhos, materializados pela escrita, a colagem e a associação inesperada de vários materiais.  


Após a intervenção seguiu-se um momento de partilha e reflexão sobre o que as participantes tinham realizado, sentimentos e pensamentos suscitados. Por motivos que se prenderam com a gestão do tempo este segundo momento da actividade não teve o desenvolvimento e aprofundamento desejado. 


ANÁLISE DA ACTIVIDADE:

"Não sou nada" apresenta-se como um desafio ao qual pretende-se que os alunos/participantes respondam o mais criativa e autonomamente possível, funcionando como uma espécie de dispositivo que tem como objectivo treinar e  desenvolver a acção interpretativa e criativa, ou seja não definida exteriormente ou à prior, a espontaneidade e intuição, a capacidade de expressão e concepção plástica bem como de diálogo, partilha e reflexão, potencializando dessa forma a capacidade de análise e sentido crítico, tendo como impulso ou base a relação, a interacção, que se estabelece entre o indivíduo (aluno/participante) e o objecto-poema e dos indivíduos entre si. 

O objecto-poema expõe uma oposição dialéctica entre o dentro e o fora, entre um ser nada exteriormente, um ser nada face a vastidão do universo, e o tudo interior, a possibilidade de tudo. Oposição expressa no excerto transcritos e acentuada pelo formato de caixa do objecto-poema, cujo vazio em relação com último verso interpela o aluno/participante desafiando-o a intervir, a ser (todos os sonhos do mundo?)... 

Procura-se, pela natureza artística, poética, do objecto-poema que a interação implique tanto um envolvimento pessoal como uma atitude reflexiva, aliando simultaneamente aspectos afectivos, emocionais, cognitivos e intelectuais. Procura-se que o aluno/participante estabeleça uma relação dialógica, ou seja, de interacção entre dois mundos de significado, o do indivíduo participante e o do objecto-poema, da qual resulta (síntese) concretamente um outro mundo de significados, o objecto-poema depois de intervencionada. A relação desejada ultrapassa a cognição (apreensão de informação) e a expressão de emoções que não pressupõem diálogo (Leontiev, 2011, p. 135), é uma relação de sentidos ou significados, uma relação estética, no sentido exposto por Leontiev, geradora de uma tensão que conduz ou é materializada na intervenção sobre o objecto-poema transformando-o. Essa tenção surge da interacção entre os significados contidos no objecto-poema e a estrutura de sentidos da personalidade do aluno/participante. 
Leontiev ao caracterizar a relação de tipo estética entre indivíduo e obra de arte, refere que este é levado a renunciar, temporariamente, à sua posição única pessoal (parcial) na tentativa de apreender o significado da obra de arte: "Para se poder assumir a posição do autor, uma pessoa tem de renunciar ao seu ponto de vista pessoal, transformando-o numa atitude estética que é essencialmente uma atitude de diálogo" (Leontiev, 2011, p. 132). Tal processo  possibilita o enriquecimento da percepção do mundo do indivíduo, a transformação e expansão da sua estrutura de sentidos, o quebrar de estereótipos e o estabelecer de relações com o mundo mais flexíveis, significativas  e orientadas para o futuro, que contemplam simultaneamente vários pontos de vista, múltiplos contextos e significados potenciais (Leontiev, 2011, p. 133). A arte, pela sua natureza polissémica, possibilita múltiplas interpretações, que podem não se anular reciprocamente, contribuindo antes para renovar o seu poder significativo, esse acumular de interpretações alternativas contribui para o processo de construção cultural que é esse partilhar de significados vivos, aí reside o seu potencial educativo.

Da relação com o objecto-poema que se deseja estética, tipo de relação que pode ter vários níveis de intensidade e profundidade conforme, utilizando a metáfora de Asmous, o cumprimento da sonda do marinheiro (Asmous, 1961, p.42, cit. por Leontiev, 2011, p.141), parte-se para a acção artística, a intervenção sobre o objecto poema, acção que envolve criar, fazer algo que está intimamente ligado às idiossincrasias do indivíduo  e que cujo extremo, o seu  grau mais elevado, está patente nas obras primas, mas que não excluí formas de criação menos complexas e elaboradas. A intervenção incorpora conhecimentos pessoais, a interpretação daquilo que se experienciou e a sua reorganização imaginativa materializada na intervenção. Processo que acontece com qualquer indivíduo, seja ou não artista profissional, com uma diferença que julgo ser de qualidade, na medida em que o artista profissional acumulou um fundo mais vasto e complexo de experiências combinado com um maior domínio dos meios que o permitem realizar a sua visão e uma intencionalidade mais consciente. 

Da intervenção artística parte-se para a partilha informal e descrição livre do que cada participante fez, sentiu e pensou. As abordagens poderão ir de um registo mais emocional para um mais reflexivo e crítico. Aqui o dinamizador/professor poderá intervir levantando questões sobre as respostas dos participantes ao desafio e as suas abordagens sobre as mesmas, no sentido de promover a reflexão e sentido crítico dos participantes. Mais uma vez estão em jogo as capacidades de estabelecer relações de sentido, de interpretar e criar significados como também de analisar aspectos formais dos objectos criados, através do diálogo entre os participantes e professor/dinamizador.

No contexto específico da actividade apresentada o papel do professor/dinamizador parece-me ser o de criar situações que sejam  suficientemente desafiantes que possam levar o aluno/participante a sair da sua zona de conforto, a questionar e ultrapassar estereótipos pessoais, a expandir a sua compreensão da arte, do mundo em geral, promovendo dessa forma o seu desenvolvimento pessoal. Não se trata de conduzir ou orientar a acção e pensamento dos alunos/participantes em direcção a uma compreensão ou fazer artístico que se julgue mais adequado ou acertado segundo uma concepção predefina de arte, mas antes proporcionar situações que permitam  aos alunos desenvolver por si uma compreensão e uma relação mais abrangente e profunda com arte e com o mundo, relação essa que por não estar predefinida poderá contribuir para formulação de novos conhecimentos e novas formas de relação com o mundo e, dentro dele, com a arte. 


ENQUADRAMENTO TEÓRICO:


"Põe-se naturalmente para o educador o problema de preparar desde a escola o cidadão que as circunstâncias reclamam, dando-lhe ao mesmo tempo todas as faculdades de iniciativa necessárias para que o mundo não pare e para que o indivíduo seja, não uma simples roda de máquina, não o passivo aceitador de tudo o que existe, mas em todas as suas actividades um homem desejoso de novos horizontes."

Agostinho da Silva, in "Textos Pedagógicos", 2000, p.235.




A concepção de uma actividade de carácter pedagógico, seja esta realizada num contexto educativo escolar ou não escolar, implica intencionalidade, ou seja, a identificação de objectivos e princípios que orientem a acção. Como afirma Dewey agir "com um propósito equivale a agir com inteligência, com consciência. Permite ter uma base sobre a qual observar, seleccionar e coordenar os meios de que dispomos e mobilizamos" (Dewey, 1913, Cap. VIII). O que, por outro lado, significa que as crenças, princípios e objectivos influenciam de forma determinante a acção pedagógica, influenciando os seus métodos e conteúdos. No que diz respeito à educação artística, ao longo da história ocidental, o seu carácter tem sido influenciado directamente pelas filosofias e teorias da arte, estando estas por sua vez relacionadas com uma determinada visão social (Efland, 1995, p. 25). Num esforço de sistematização Arthur Efland identifica 4 modelos de ensino artístico que têm dominado o ensino artístico ocidental e que apesar de serem mais característicos de determinados períodos da história, dependendo da instituição e mesmo dos professores, acabam por coexistir no tempo. São eles os modelos: mimético-behavorista, social-reconstruccionista, expressivo-psicoanalítico e formalista-cognitivo. Modelos que, como refere Efland, são mais do que possibilidades teóricas, são realidades históricas baseadas em tradições estéticas em conjunto com tradições pedagógicas, perspectivas sobre o papel da educação e da arte na sociedade (idem. p. 28). 

Vivemos num período em que, face à consciência da complexidade e ambiguidade da realidade e da existência humana, o pensamento e a acção humana, e a arte dentro destes, caracterizam-se por uma multiplicidade de propostas e abordagens relacionadas com o que Bauman denomina de individualização das socidades. Mais do que querer pertencer a um grupo ou movimento o indivíduo tende a cria a sua própria identidade, a definir e a redefinir a sua forma de ver os vários aspectos da vida, a trilhar o seu próprio caminho. Segundo Efland, exige-se que a educação artística seja também ela múltipla, que integre vários modelos e abordagens, não privilegiando um modelo único como verdadeiro em detrimento de outros. A única proposta válida, ou seja capaz de representar a natureza contraditória e diversa da arte, é a que integre vários modelos e abordagens adequados a conteúdos e objectivos diferenciados. Coloca-se aos professores e alunos o desafio da compreensão dessa mesma diversidade, das suas bases históricas e sociais, o que requer uma abrangente compreensão dos estudos críticos e históricos realizados. (idem. pp. 38,39).       

A actividade em análise compromete-se com o objectivo de promover o desenvolvimento pessoal, o desenvolvimento do ser humano entendido como “(...) presença no mundo, com o mundo e com os outros. (...) presença que se pensa a si mesma, que se sabe presença, que intervém, que transforma, que fala do que faz mas também do que sonha...” (Freire, 1996, p.18). O desenvolvimento humano faz-se de várias formas e envolve várias áreas do saber e da acção humana. 
São, pelo exposto anteriormente, identificáveis aspectos do modelo expressivo-psicoanalítico, modelo que relaciona a estética expressionista da arte que entende a arte como produto da imaginação do artista e de uma pedagogia centrada no indivíduo segundo a qual o conhecimento é uma construção individual. Em ambos é valorizado o papel da imaginação na aprendizagem, na formulação de novas construções, entendimentos  e perspectivas, entendidos como processos mentais para os quais são determinantes as emoções e sentimentos. Segundo este modelo a arte possibilita o desenvolvimento pessoal e o avanço cultural residindo aí o seu valor e papel terapêutico. A aprendizagem é entendida como um processo de integração pessoal. A construção de uma visão pessoal do mundo aproxima-se à criação artística como acto original, único. A validade da visão pessoal de cada um é avaliada pela sua consonância com a realidade, o seu valor, como o valor da arte está na medida em que conduz à realização pessoal de cada um. 
A actividade possuí também um carácter socializante baseado no trabalho cooperativo e numa aprendizagem individual construída na relação e diálogo com os outros num contexto e situação específicos. Características que se enquadram no modelo social-reconstruccionista, modelo que surge da relação entre uma estética pragmática e de uma concepção da educação como instrumento de reconstrução social, em ambos os casos arte e educação têm um valor ou papel instrumental. O ensino/aprendizagem é organizado em torno de situações centradas nas vivências. A verdade e o conhecimento não são considerados como absolutos mas antes emergem dos sucessivos encontros com a realidade, o seu valor ou utilidade é aferido de acordo com a sua maior ou menor aproximação à realidade permitindo consequentemente uma maior ou menor adaptação a esta.


PARA UMA INTEGRAÇÃO NO CONTEXTO ESCOLAR SEGUNDO UMA ABORDAGEM MÚLTIPLA E INTEGRADA DO ENSINO DAS ARTES:

Considero que a actividade proposta, bem como outras actividades da mesma natureza, poderia integrar o currículo escolar, nomeadamente do ensino secundário, constituindo não uma abordagem exclusiva mas parte integrante de um corpo variado de abordagens múltiplas conforme objectivos determinados e de forma a possibilitar aos alunos um contacto e um entendimento da arte na multiplicidade das suas facetas e valências, podendo abranger aspectos presentes também nos modelos mimético-behavorista e formalista-cognitivo. Esse corpo integraria cinco tipos de abordagens que se relacionam entre si e que cobrem os aspectos artísticos, artesanias, técnicos e científicos: a Produção, que envolve criar fazer algo que está intimamente ligado às idiossincrasias do indivíduo; a Reprodução, que se relaciona com o representar o visível recorrendo a abordagens múltiplas, e aqui é importante implicar os alunos na escolha dos temas ou objectos promovendo dessa forma a relação com os mesmos; a Percepção, que implica receber impressões sensoriais, diferenciar, seleccionar, processar essas informações e dar-lhe significado; a Interpretação, que envolve analisar e expressar entendimento noutro meio que não o da obra analisada, esta pode ser trabalhos realizados pelos próprios alunos ou obras de artistas e podem abranger várias formas de arte, nomeadamente a literatura introduzindo-se assim a ilustração e a narrativa gráfica; e a Reflexão, que pressupõe colocar em perspectiva, considerar, investigar em contextos históricos, sociológicos, psicológicos, etc. (Nielsen, 2007, p. 273). 
A actividade poderia constituir um ponto de partida para uma pesquisa e exploração plástica e intelectual em torno dos significados e relações estabelecidas pelos alunos a partir do objecto-poema, podendo a actividade assumir um tom mais positivo intitulando-se "todos os sonhos do mundo". 


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BIBLIOGRAFIA:

DEWEY, John
; Democracy and Education: An Introduction to the Philosophy of Education; ed. The Macmillan Company, Nova York, 1916; University of Virginia American Studies Program 2002-2003; disponível em: http://xroads.virginia.edu/~HYPER2/dewey/cover.html.

EFLAND, Arthur, "Change in the Conceptions of Art Teaching", in NEPERUD, Ronald W. (ed.) - Context, content and community in Art education: beyond post modernism, New York: Teachers College Press, 1995, pp. 25-40.


FREIRE, Paulo; Pedagogia da Autonomia, saberes necessários à pratica educativa; ed. Paz e Terra; São Paulo, Brasil; 1996.



LEONTIEV, Dmitry; "Funções da Arte e educação estética"; in FRÓIS, João P.(ed.), Educação Estética e Artística, Abordagens Transdiciplinares; ed. Calouste Gulbenkian; Lisboa; 2a ed.; 2011.

NIELSEN, Frede; "Music (And Arts) Education From The Point Of View of Didaktik And Bildung", in BRELER, Liora (ed.), International Handbook Of Research In Arts Education, Vl. 1; Springer, Dordrecht, Netherlands, 2007, pp. 263, 285. disponível em: http://213.55.83.52/ebooks/Social%20Science/International-Handbook-of-Research-in-Arts-Education.pdf

SILVA, Agostinho; Textos Pedagógicos, ed. Âncora; Lisboa, 2000.