O relato da história de vida pessoal envolve um olhar para aquilo que fomos contextualizado por aquilo que somos no presente momento em que fazemos esse exercício de escuta. Múltiplas narrativas podem surgir em cada momento de escuta interior, consoante aquilo que nos surge, a cada momento, como mais significativo, consoante, também, o que o nosso inconsciente revelar ou desvelar.
Organizei a narrativa por quadros temáticos, imagens que focam aspectos de momento mais importantes e significativos para mim, tendo em conta o contexto em que a narrativa é pedida. A cada quadro corresponde um texto, mas um não é a tradução do outro, texto e imagem contribuem da sua forma para contar esta história.
QUEM SOU...
... ou vou sendo a cada instante, sucede daquilo que fui sendo desde o momento em que nasci.
A partir do que vou vivendo vai-se construindo, transformando e desvelando a identidade que sou, essa existência em potência que necessita de encontrar a(s) sua(s) forma(s) de ser.
MUITO DO QUE SOU...
... provém daqueles de quem nasci, os meus pais, os pais deles, os pais dos pais deles. Fiquemos pelos meus pais pois é complexa a minha asscendência principalmente da parte paterna, envolta em indefinições que necessitariam de mais tempo para clarificar. O que sei é que provenho de mais nacionalidades que a portuguesa.
Os meus pais, tal como o meu irmão, nasceram em Angola, ex-colónia portuguesa. País que sonhavam livre e que a guerra e a doença levou-os a abandonar e a construir uma nova vida de mãos quase vazias num país ao qual não sentiam pertencer. Dos meus pais herdei para além do corpo que habito esse sentimento por vezes angustiante de ser desenraizada mas também a coragem de recomeçar.
... entre histórias e sabores dum país distante que 27 anos de guerra civil e consequente destruição e sofrimento faziam sentir perdido, um país que já não era o que fora para aqueles que as contavam, não por um qualquer orgulho ferido de ex-colono que os meus pais não sentiam ser, pois afirmavam-se, ao contrário de outros familiares, como angolanos e não como colonos portugueses, mas antes pela transfiguração dos escombros e da fome sofrida pela terra e as gentes que amavam.
EM ESTREITA COMPANHIA...
..., desde o meu estado embrionário, da minha irmã Catarina, lado a lado vivemos quase todos os momentos da nossa vida até à entrada na faculdade levar-nos para cidades diferentes e distantes que procurei mesmo assim aproximar com visitas regulares às Caldas da Rainha. Ao longo do nosso crescimento desenvolvemos uma relação muito próxima, uma quase simbiose: funcionávamos em complementaridade colmatando as falhas ou dificuldades uma (d)à outra. A separação, apesar de difícil, foi importante, permitiu-nos ser mais completamente nós próprias, ultrapassar as dificuldades e perceber que a distância permitia uma outra proximidade.
NA EDUCAÇÃO ESCOLAR...
... cedo fui confrontada com o constrangimento imposto por uma pesada tradição escolar que remontava ao período do Estado Novo. Tenho a memória de se encontrar pendurado numa das paredes da sala destinada aos alunos da 3ª e 4ª classe um retrato de Salazar. Constrangimento simbolizado pela bata azul escura vestida todas as manhãs sob o pretexto de uma aparente igualdade traída pelo tratamento diferenciado que era dado às crianças conforme a posição social dos pais. Ficámos dois anos nessa escola mais por questões de necessidade: no Externato Dª Ana passávamos a manhã e a tarde ao contrário do que acontecia na escola pública onde estudara o meu irmão, como não tínhamos nenhum adulto com quem ficar, aquela parecia ser a melhor solução. Felizmente os meus pais perceberam que aquele não era um bom lugar para nós, tanto pelos relatos que fazíamos da forma como algumas crianças eram tratadas como por situações que a minha mãe presenciara quando ia-nos buscar, nomeadamente a típica humilhação que se praticava quando alguém não sabia a tabuada de cor: a turma em uníssono a gritar BURRA apontando para uma criança no canto da sala com orelhas de burro feitas em cartolina na cabeça.
A mudança de escola aliviou o constrangimento mas não o eliminou, de quando em quando lá surgia, ora revelando-me a arbitrariedade dos comportamentos humanos que levavam-me, mais do que respeitar, a temer grande parte professores, ora fazendo-me desejar o retorno aos momentos mais... livres (?), as tardes passadas a correr e a brincar no pinhal.
Apesar desse sentimento gostava da escola, não só porque podia fazer amizade com outras crianças mas principalmente porque gostava de aprender. Em casa com a minha irmã fazíamos de conta que estávamos na escola, era uma das nossa brincadeiras, numa escola onde não se tratavam mal as crianças e onde se aprendia não por obrigação mas por gosto, onde, para além de escrever e fazer contas faziam-se desenhos, muitos desenhos, desenhos que contavam histórias. O meu irmão aproveitava o nosso gosto pela escola e pedia-nos para ajuda-lo nos trabalhos de casa mais simples, nós claro ficávamos muito contentes porque tínhamos oportunidade de fazer exercícios dos alunos mais velhos!
... cedo percebi o que queria ser quando crescesse: poder continuar a fazer aquilo que mais gostava de fazer, desenhar e pintar. Com onze e doze anos fazia-o já de uma forma metódica, dedicava muitas horas a desenhar, tanto situações imaginadas como imagens, na sua maioria de pessoas. Guardava os desenhos que fazia, assinados e com data, numa pasta verde.
Quando tive de escolher uma área de estudos, na passagem para o então 9º ano de escolaridade, não foi difícil: com toda a convicção e alegria, ARTES!
Na escola onde estudava no 9º ano não havia muitas condições para o ensino das artes, mesmo assim e por mérito e dedicação da professora tivemos a oportunidade de pintar azulejos. Perante o interesse e aptidões que tanto eu como a minha irmã demonstrávamos a professora aconselhou os meus pais a matricularem-nos numa escola especificamente de ensino artístico quando transitássemos para o 10º ano: a escola secundária de ensino artístico António Arroio.
E assim foi...
A mudança teve um sabor a libertação! Libertação do mundo limitado e desinteressante em que vivia e que por aquela altura começava a sufocar-me. Sentia uma urgente necessidade de alargar os meus horizontes. Dizia repetidamente para mim mesma "o mundo não é só isto, o mundo não é só isto..."
Foram os três anos de escola mais felizes da minha vida, mais ricos em aprendizagens e relacionamentos humanos, simbolizados pela imagem atrás apresentada: "AMO-TE", com o A de anarquia, escrito, ainda hoje, na fachada da escola sobre a porta, é a palavra exacta para representar o espírito que se vivia naquela escola, dos professores aos alunos.
A entrada na Faculdade de Belas Artes de Lisboa, ambicionada por quase todos os meus amigos e colegas da António Arroio, coincidiu com a separação entre mim e a minha irmã, a Catarina tinha conseguido vaga na Escola Superior de Tecnologia, Gestão, Arte e Design das Caldas da Rainha. Foram dois momentos de mudança com um forte impacto sobre mim, combinados acentuaram a dificuldade em geri-los.
Um dos sentimentos que consigo reconhecer dos primeiros anos de faculdade é o de desilusão: a minha expectativa em relação à Faculdade era alta, relacionava-a com investigação, com aprofundar de conhecimentos, com o questionar, com autonomia para fazer escolhas e poder reflectir sobre elas com o apoio dos professores que imaginava, inspirada pelas experiências que tivera na António Arroio, mais próximos.
O que encontrei não era muito diferente do ensino secundário, não havia muito espaço para o pensamento, para o questionar, o conhecimento era essencialmente transmitido como um dado adquirido. Raramente se estabelecia o diálogo entre professor e aluno, estava sempre subjacente uma hierarquia intelectual, ao professor cabia falar e ao aluno escutar. Raramente numa aula foram discutidos conceitos, ideias ou perspectivas, só com alguns poucos professores isso acontecia. Fora das aulas o cenário era em geral o mesmo, o espírito de partilha e diálogo que animava os corredores da António Arroio não se encontrava nos corredores das Belas Artes, salvo raras excepções.
Tanto quanto possível procurei fazer o meu caminho cruzando-o o mais possível com outros caminhos. Reflectia e procurava perceber o que fazia o que me levava a argumentar com os professores quando faziam comentários com os quais não concordava, e não porque desvalorizasse o que diziam mas porque também eu pensava e julgava importante partilhar aquilo que pensava para através do diálogo poder-se gerar uma mais abrangente compreensão do que estava a ser comentado. Parecia-me ser um processo natural de aprendizagem, através do diálogo, da discussão de ideias, mas todavia, este não era, ali, muito praticado.
DESDE A ADOLESCÊNCIA...
... fui construindo o meu imaginário, a minha compreensão pessoal do mundo, da realidade que me rodeava, posicionando-me re-posicionando-me perante vários aspectos da vida. Primeiro a literatura, mais tarde o cinema, contribuíram muito para esse processo de construção pessoal. Nós não tínhamos uma biblioteca em casa onde pudéssemos encontrar livros e deixar-nos conduzir pela curiosidade, mas à medida que fomos crescendo a minha mãe foi comprando alguns livros que achava importantes para a nossa formação e outros que o meu irmão pedia, graças a ele acabei por ter contacto com poetas, escritores e filósofos mais marginais, que de certa forma contribuíram para a formação de uma consciência mais crítica. Aquilo que lia e pensava estava sempre muito presente no meu dia a dia, influenciava a minha forma de estar na vida, as escolhas que fazia, aquilo que procurava. As conversas no café com a Rita e a minha irmã: liamos poesia no café, conversávamos sobre o sentido que então dávamos à vida, sobre o que sonhávamos, mostrávamos desenhos e a Rita coisas que escrevia. A convivência que mantínhamos, e continuámos a manter mesmo quando fomos estudar para Lisboa, era como um oásis no deserto "cultural" do Cacém.
O primeiro livro que me marcou de forma significativa e que influenciou escolhas importantes na minha adolescência, ajudando-me a tornar-me mais consciente da realidade e por isso mais responsável, foi Os Filhos da Droga, de Christiane F.. Cru relato, na primeira pessoa, da vida de uma adolescente que com treze anos cai no submundo da droga e da prostituição. Recordo estar a passear junto à escola primária e imaginar vivamente, influenciada pela leitura dos relatos da adolescente, o que seria acordar de manhã e precisar de consumir uma substancia para não sentir fisicamente dor. Essa necessidade significava para mim uma asfixiante falta de liberdade, pensava eu ao descer a rua, não vou por aí! Essa convicta consciência, esse desejo de liberdade, permitiu-me optar. Na minha adolescência o contacto com drogas como a heroína estava ao virar da esquina, alguns amigos e conhecidos viraram na esquina e seguiram de olhos bem fechados pelo labirinto de si próprios.
A CONDIÇÃO HUMANA...
... a(s) existência(s) humana(s), o ser, o poder, o político, o desconhecido, entre outras questões, estão desde cedo presentes na forma como me relaciono com a arte, a própria acção de criar algo está para mim impregnada dessas questões, desse mistério paradoxal que é a condição de ser humano/a da qual a arte parece ser a mais aguda manifestação.
UMA OUTRA FORMA DE SER ARTISTA...
Tanto a educação, a política como a sociedade podem ser entendidas como construções, como formas de construir e organizar a vida humana. A forma como pensamos e agimos nas várias dimensões da vida, se criativa e por isso transformadora, por oposição a reprodutora e mecânica, pode ser entendida como arte, num sentido ampliado do conceito de arte, ou como propunha Beuys, escultura. Escultura social, participando da produção e transformação do tecido social. Tanto a educação como a política são meios fundamentais para a construção e organização das sociedades, são por isso meios privilegiados para a sua transformação, transformação desejada por uma certa tradição humanista e romântica de artistas com a qual me identifico.
Em 2006 tive a oportunidade de começar a pôr em acção estas ideias e formas de entender principalmente a arte e a educação, entendida também ela num sentido ampliado que transcende a educação escolar e que vai de encontro às propostas de John Dewey, segundo as quais o próprio processo de convivência, quando movido por um interesse assente na relação, é educativo. Colaborei enquanto formadora de artes plásticas em dois projectos de intervenção social e comunitária com a Associação de Intervenção Social e Comunitária Crescer na Maior, no Centro Ocupacional/Ludoteca localizado num dos bairros sociais que alojou os moradores do antigo Casal Ventoso. Um dos projectos era direccionado para população adulta, na sua maioria sem abrigo e com problemáticas relacionadas com a toxicodependência, o outro para crianças e jovens em risco moradores no Vale de Alcântara. Em ambos os projectos procurei, partindo da relação com cada contexto específico, criar situações, actividades, que promovessem a iniciativa individual e a acção criativa, bem como o estar e o agir em conjunto de uma forma saudável e construtiva, como foi o caso do projecto de pintura mural realizado no Bairro Quinta do Cabrinha, projecto que envolveu de forma espontânea tanto as crianças e jovens do bairro como alguns moradores, projecto que teve um impacto positivo na vida do bairro.
Com a Associação Crescer Na Maior tive a oportunidade de trabalhar em equipa com profissionais na sua maioria ligados à área da psicologia, onde cada um era chamado a dar o seu contributo para a resolução de problemas concretos que surgiam do trabalho que desenvolvíamos com cada população. Cada problema, situação ou projecto era discutido em equipa durante reuniões que fazíamos semanalmente. Uma forma de trabalho com qual me identifico e que julgo mais eficaz, apesar das dificuldades que as relações e a comunicação entre indivíduos acarreta, e que faria sentido em contexto escolar. É exemplo disso o trabalho colectivo entre professores, alunos e comunidade, desenvolvido à mais de duas décadas na Escola Ponte, escola que tive o prazer, em conjunto com a Elisa, de visitar no passado ano. O trabalho que tive a oportunidade de desenvolver de forma conjunta com a equipa e direcção da Crescer Na Maior foi das experiências profissionais mais gratificantes e exigentes que tive até hoje, tanto pelas populações em causa como pela natureza colectiva do trabalho. Um dos aspectos que saliento foi o da abertura e compreensão em relação à natureza do projectos que fui propondo que transcendiam a convencional manualidade a que se restringem muitas vezes as actividade ocupacionais.
A educação em relação com intervenção social são campos de acção que me interessam explorar profissionalmente pelos contributos directos que podem proporcionar a pessoas concretas e consequentemente à sociedade, segundo uma linha de pensamento e acção enquadrada numa concepção da educação para a autonomia e emancipação do indivíduo, da qual depende uma verdadeira democracia.