sábado, 24 de novembro de 2012

Prática profissional supervisionada: uma educação artística integrada e integrante



A concepção e desenvolvimento da unidade didática para a disciplina de Desenho A foi-se configurando aos poucos, surgindo intuitivamente de um entrecruzar de princípios, percepções e aspirações sobre a educação e sobre a arte, que ao serem consciencializados tomaram a forma do projeto Do mundo para a sala de aula, da sala de aula para mundo


Do mundo para a sala de aula, da sala de aula para o mundo, é um projeto didático que consiste, em traços gerais, na concepção e realização pelos alunos de publicações a partir da apropriação de imagens e textos recolhidos por estes. As publicações são desenvolvidas coletivamente, em grupos de trabalho constituídos por 5 a 6 alunos, podem assumir o formato de brochura ou de desdobrável. São posteriormente impressas e também disponibilizadas, em formato electrónico, na internet, através de um blogue concebido para o projeto, no qual são também divulgadas todas as fases de desenvolvimento do projeto, bem como, material pedagógico relacionado com este, nomeadamente exemplos de obras de artistas que contribuam para a compreensão dos conceitos e processos artísticos abordados.



Através dos conceitos de apropriação e de publicação, o projeto procurou promover e articular relações entre o trabalho escolar, os interesses e dinâmicas juvenis e o mundo exterior à escola - entre os alunos e o mundo que os rodeia; entre os seus interesses e conceção do mundo (em construção) e os conteúdos da disciplina de Desenho A; entre reflexão e produção; entre o individual e o coletivo. 

A apropriação, enquanto estratégia artística que implica a utilização e recontextualização de objetos e imagens pré-existentes, na realização de um novo trabalho, é um conceito bastante vasto que abrange múltiplos processos, como a colagem, a montagem e a intervenção sobre imagens e objetos, e permite explorar de um modo interligado diferentes aspetos da prática artística, tanto semânticos, como formais, técnicos e materiais. Permite também uma abordagem menos convencional do desenho, que inclui o real, em vez de o representar, explorando e problematizando a densidade e instabilidade de sentidos  que o real acarreta, e transformando-o em forma (Hauptman, 2005, pp. 31-35). Uma abordagem que tem consequências para o ensino do desenho. Não sendo o propósito do desenho representar a realidade visível, o processo de ensino-aprendizagem deixa de estar centrado no desenvolvimento da capacidade de representação, para abranger de forma equilibrada aspetos da didática artística relacionados com a percepção, a interpretação, a associação, a invenção e a produção, em relação com aspetos da cultura visual. Ao envolver-se a cultura visual, apresenta-se a arte, e mais especificamente o desenho e o seu ensino, como parte da vida dos estudantes (Parsons, 2008, p. 776). Para o que contribui também a publicação possibilitando que os alunos ao realizarem um produto, um objeto, cujo objetivo é ser partilhado, intervenham, de forma conjunta e construtiva, na realidade

Ao estabelecer-se relações entre diferentes dimensões da  realidade e da vida dos alunos, propiciam-se aprendizagens significativas, nas quais os alunos dão, por si próprios, sentido às suas aprendizagens e experiências, construindo a sua visão do mundo, de si próprios, e do seu lugar no mundo. A aprendizagem significativa é considerada por Parsons como um dos principais propósitos do currículo integrado. Parsons observa que o interesse renovado da educação em geral pelo currículo integrado está relacionado com a crescente complexificação das sociedades contemporâneas, pelo que uma educação socialmente relevante deve contemplar esse factor na organização curricular, contribuindo para que os alunos desenvolvam uma personalidade mais integrada, para o seu auto-conhecimento e compreensão dos outros. No que diz respeito à educação artística, Parsons refere uma outra razão, relacionada com o crescente desenvolvimento e proliferação da comunicação visual, que tem as suas implicações na arte contemporânea, esbatendo as distinções entre "belas artes" e cultura popular, e cujo estudo deve ser integrado no ensino artístico  (Parsons, 2008, p. 775, p.780). Uma perspetiva integrada do currículo aparece também frequentemente associada à psicologia construtivista, ao seu entendimento da cognição e da aprendizagem, enquanto processos sociais e individuais, em que o indivíduo constrói o seu entendimento da realidade, na relação com essa mesma realidade e com os outro (Efland, 2008, p. 53-54; Parsons, 2008, p. 782). 

O projeto  Do mundo para a sala de aula, da sala de aula para mundo, apesar de ter acontecido num contexto escolar cuja organização curricular carateriza-se pela estandardização e compartimentação dos saberes, do espaço e do tempo escolar, aproxima-se de uma abordagem integrada do currículo - ao articular os conteúdos nacionalmente definidos no Programa de Desenho A, com uma abordagem não convencional do desenho, que coloca em questão tanto o seu próprio conceito, como também, o conceito de autor e de criação, contribuindo para a problematização e reflexão sobre conceitos fundamentais em arte e integrando estratégias artísticas contemporâneas; com a comunicação visual, que permite uma relação com a realidade que envolve os alunos nas suas diferentes dimensões; com uma abordagem construtivista da aprendizagem, criando situações em que o aluno é chamado a construir o seu entendimento do mundo e a intervir, individual e colaborativamente, sobre este. No decorrer do projeto, e na suas diferentes fases, os alunos foram chamados a refletir, a interpretar, a estabelecer relações e a dialogar sobre os conceitos e processos de apropriação abordados, sobre as imagens recolhidas e sobre as imagens inventadas. O desafio de conceberem e realizarem uma publicação em conjunto, totalmente imaginada e inventada pelos alunos, sem um tema à partida, apenas com a condição de integrarem os processos de apropriação abordados ou outros, permite que os alunos se assumam como agentes, como produtores e criadores, de algo que ganha existência material não só para eles mas também para os outros. 

Pelas caraterísticas expostas, o presente projeto pedagógico enquadra-se no que Efland designa de visões emergentes da educação artística, que sendo emergentes e estando em processo de exploração, carecem ainda de uma teorização suficientemente consistente que as permita ser aceites pela comunidade profissional e produzir mudanças concretas na forma como se pensa e pratica a educação artística em geral. Porém inspiram a mudança, ao mesmo tempo que demonstram conexões e revêm criticamente aspetos de práticas passadas combinando-os com os novos conhecimentos nas áreas científicas e humanísticas (Efland, 2008, pp. 691-699). A visão integrante e integrada do ensino do desenho, ensaiada no projeto, tem os seus antecedentes no movimento da escola progressista da segunda década do séc. XX, com John Dewey, pedagogo e filósofo norte americano, como um dos seus principais teóricos, e a defesa de uma educação centrada na criança como alternativa a uma educação baseada na eficiência social e ao seu modelo de ensino estandardizado, tipo fábrica, cujas práticas eram consideradas pelos defensores de uma escola centrada no aluno, como incompatíveis com os ideais democráticos. Alternativa que encontra ecos tanto no paradigma expressivo-psicoanalítico como no paradigma social-reconstruccionista, dos quais podemos identificar respetivamente alguns aspectos no presente projeto. Para além de uma educação centrada no aluno, entendido como centro do processo educativo, comum aos dois paradigmas, temos a valorização da criatividade e da expressão individual, a atenção à dimensão afetiva, procurando-se estabelecer uma relação individualizada entre professor e aluno, baseada na confiança  e na compreensão (expressivo-psicoanalítico). O carácter socializante do projeto, contemplando, para além do trabalho individual, o trabalho colaborativo, em que uma aprendizagem individual é construída na relação e diálogo com os outros e através do desenvolvimento de um projeto de publicação comum. Carácter presente também na relação estreita que estabelece com o meio envolvente o que aproxima o projeto do paradigma social-reconstruccionista, mas sem a concepção exclusivamente instrumental da arte e da educação que o caracteriza. Penso que na visão implícita no projeto, a arte e a educação não surgem apenas como meios para construir a sociedade, mas antes como parte da vida dos alunos e da vida das sociedades e em relação intensa com os seus múltiplos aspetos. Como referia Eisner  na palestra What do the arts teach?, a escola deveria ser o local onde se aprende a viver a vida nas suas múltiplas dimensões, e não apenas como preparação para um futuro, que é cada vez mais incerto, nesse sentido o objetivo da educação seria o de ajudar os mais novos a perceberem como é que podem tornar-se os arquitectos da sua própria educação e desenvolvimento. A aprenderem a assumir a responsabilidade pelas suas vidas, pelo que se vão tornar, através das escolhas que fazem e que a escola torna possíveis (Eisner, 2006). A não instrumentalização da arte e da educação, permite que sejam intrinsecamente valorizadas. A arte surge assim como área do conhecimento, com a sua linguagem e conceitos específicos, sobre os quais o presente projeto procurou suscitar a compreensão e reflexão, através da prática, do questionamento e de exemplos de artistas que ilustram determinados processos (veja-se por exemplo os processos de apropriação explorados), identificando-se por isso aspetos do paradigma formalista-cognitivo, no qual está subjacente uma estética formalista que define a arte segundo aspectos estruturais e formais,  e um ensino que procura dar aos alunos as habilidades e conteúdos conceptuais necessários à produção artística e à compreensão da arte em geral, facilitando o questionar através da descoberta e experimentação (Efland, 1995, pp. 25-40).    

   
Todo o trabalho de concepção, que envolveu, a par da intuição, a investigação de aspectos históricos, conceptuais e técnicos relacionados com a apropriação e a publicação, de desenvolvimento e posterior teorização sobre o presente projeto, relacionam-se com o conceito de professor-artista e investigador, na constante procura de estabelecer relações entre as minhas visões sobre a arte e a educação e o contexto educativo em que atuei, tendo como principal eixo, os alunos, vistos como indivíduos, com as suas idiossincrasias, os seus interesses e formas de estar, as suas qualidades e dificuldades. Pois é no contato efetivo, diário e interessado, que o presente projeto pedagógico ganha vida, e sem o qual não passaria da mera intenção. A sua concretização, que considero um ensaio, no sentido em que há aspetos ainda a serem melhorados, e o entusiasmo e envolvimento demonstrado por grande parte dos alunos, influenciando trabalhos pessoais e outros exercícios realizados na disciplina de Desenho, permitem concluir que existem espaços de liberdade no atual sistema educativo, cabe ao professor tirar o maior partido deles, dando sentido à sua prática profissional e propiciando aos alunos essa mesma construção de sentido sobre as suas experiências e aprendizagens.   




Referências Bibliográficas          


Efland, A. (2008). Art education as imaginative cognition. In Eisner, E. & Day, M. (ed.). Handbook of Reseacrch and Policy in Art Education. Nova Jersey: Taylor & Francis e-Library.

Efland, A. (2008). Emerging visions of art education In Eisner, E. & Day, M. (ed.). Handbook of Reseacrch and Policy in Art Education (pp.691-700). Nova Jersey: Taylor & Francis e-Library.

Efland, Arthur (1995). Change in the conceptions of art teaching, in Ronald W. Neperud (ed.). Context, content and community in art education: beyond post modernism (pp. 25-40). New York: Teachers College Press.      

Hauptman, Jodi.(2005) Drawing from the Modern, 1880 - 1945. Nova York: The Museum of Modern Art. 


Parsons, M. (2008). Art and Integrated Curriculum. In Eisner, E. & Day, M. (ed.). Handbook of Reseacrch and Policy in Art Education. Nova Jersey: Taylor & Francis e-Library.



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