Cara professora X,
Escrevo esta carta num momento da minha vida em que me preparo para ser, tal como a professora o foi, professora. Preparação que leva-me a recordar e observar criticamente os exemplos, positivos e negativos, que contribuíram, positiva e negativamente, para a minha aprendizagem enquanto aluna e, presentemente, enquanto professora. Procuro na memória dos sentimentos dos pensamentos das experiências as aprendizagens suscitadas.Procuro perceber criticamente dar sentidos construtivos a essas experiências, sentidos que possam iluminar o caminho da acção pedagógica que pretendo ter de forma consciente e implicada.
Recordo, estávamos no 11º ano do curso geral de artes da mítica Escola de Ensino Artístico António Arroio, a professora leccionava as aulas de Materiais de Registo e Técnicas de Expressão que correspondiam ao que se convencionou designar por Desenho. Falo no plural porque, por um lado, éramos uma turma, no geral, unida que partilhava pensamentos, ideias, alegrias e angústias, realizações, aspectos que contribuíram inegavelmente para a minha formação escolar e pessoal. Por outro porque me é difícil dissociar daquela que foi, ao longo da minha vida e até a minha entrada na Faculdade de Belas Artes, uma presença constante, a minha irmã gémea, Catarina.
Recordo, o primeiro exercício que fizemos, uma colagem livre que nos representasse, com os materiais que quiséssemos sobre aquilo que quiséssemos. Recordo entusiasmo pela liberdade de que dispúnhamos. No final do trabalho, que durou algumas aulas, cada um mostrou o que realizara, a professora e colegas comentaram os trabalhos. Recordo o que fizera, uma composição de imagens que me interessavam pela força que tinham e pelo sentido que ganhavam em conjunto em diagonais que se cruzavam um rosto masculino obliquamente gritava a preto e branco ocupava quase toda a folha, em seu redor dispunham-se outras imagens ramos secos de árvores rasteiras ou seriam troncos caídos queimados e contorcidos mãos de alguém erguidas num céu onde esvoaçava um pássaro.
Recordo o seu comentário impressionado e satisfeito que me causou um misto de satisfação e embaraço: “aqui está uma pessoa que está no curso certo!” afirmou. Porque há outras que não estão? indaguei. E o embaraço veio daí, dessa discriminação que não conteve. Analiso os motivos do embaraço: qual o contributo pedagógico de tal afirmação feita apenas a mim, que não o de criar diferenciação e exclusão? E esse não é certamente um motivo pedagógico, ainda para mais no princípio do ano quando tantas aprendizagens, tantas descobertas estavam ainda por fazer. Que perspectiva do ensino está nele implícita, uma mera constatação das qualidades de alguns? Não me revejo enquanto professora nessa posição, prefiro aquela que olha para cada aluno como um ser único, especial em si próprio, que não se pode medir, avaliar segundo comparações fáceis que só contribuem para discriminar entre capazes e não ou menos capazes, um ser único que deve ser avaliado e apoiado, primeiro, nas suas conquistas e superações.
Recordo, um outro comentário seu que me magoou particularmente, comentário que segue a mesma linha que o anterior, mas de natureza oposta, dirigido à pessoa que posso dizer ser-me a mais próxima e que chocou não só a mim como a todos os colegas que por estarem perto ouviram: “Coitadinha, tens o dedo partido e nem sabes desenhar!”. Nesse momento enraiveci por dentro, insultei-a por dentro, chorei por dentro, possivelmente mais do a pessoa a quem foi dirigido o comentário. Que falta de sensibilidade, que ausência de sentido pedagógico. É, apesar de infeliz, um comentário que levanta muitas questões que se prendem com as anteriores e com outra que é: o que é desenhar bem? Como avaliar isso? Qual a necessidade de o avaliar? Ainda para mais, dessa forma em jeito de comentário não muito bem intencionado? Que objectivos pedagógicos aí implicados? Que visão do ensino? Não será antes o papel do professor ajudar o aluno a desenvolver as suas potencialidades e não o aferir taxativamente a suposta falta de capacidades dos alunos? O episódio como talvez recorde teve um desenlace interessante que fez-lhe reformular a sua precipitada opinião e expectativa negativa em relação à sua aluna, por acaso minha irmã gémea.
Recordo, momento de preparação para provas globais, para a sua disciplina iríamos fazer um exame de desenho, teríamos de desenhar um fruto ou legume, a professora queria preparar-nos bem, fizemos um ensaio da prova, cada um desenhou um fruto ou legume à sua escolha, disse-nos que entregássemos o desenho sem o identificar. A professora iria avalia-los anonimamente, iria recorrer ao seu marido, arquitecto, pedindo-lhe que escolhesse o melhor desenho entre todos, e qual não foi a sua surpresa, tal como confessou, o que o seu marido elegera como sendo o melhor desenho era, nem mais, o desenho da pessoa a quem atribuíra fracas aptidões para o desenho e que, apesar do seu comentário depreciativo, continuara a desenhar como desenhava, entregando-se de corpo e alma ao que era, e continua a ser, para ela uma vocação. Questiono também a necessidade e o sentido pedagógico da eleição.
Um ponto positivo sou obrigada a lhe reconhecer, a capacidade que teve precisamente em, reconhecer perante a turma o erro que cometera, o que todavia não apagou da memória o erro. Contudo, como dizia um amigo, o erro faz parte da dinâmica evolutiva! No que a mim diz respeito, o erro que faz-me reflectir sobre o sentido ético e pedagógico do papel do professor espero que a si tenha levantado também o mesmo género de reflexões.
Saudações,
Teresa Verdier.
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