segunda-feira, 6 de agosto de 2012

"não sou nada" - proposta de unidade didáctica





Objecto-poema a ser intervencionado, constituído por uma caixa de cartão aberta de um dos lados e a primeira estrofe do poema "Tabacaria" de Álvaro de Campos. 



CONTEXTUALIZAÇÃO:

Para a apresentação do relato de uma unidade didáctica propus aos meus colegas e professora a realização da actividade "não sou nada" que concebera em 2009 como dinâmica de grupo para o contexto específico do Centro Ocupacional da Associação de Intervenção Social e Comunitária Crescer na Maior. Centro frequentado na sua maioria por uma população sem abrigo e com problemáticas relacionadas com a toxicodependência. 

No seu contexto original a actividade integrava um série de dinâmicas de grupo de carácter artístico que pretendiam suscitar nos participantes formas de estar e agir mais construtivas e criativas, procurando dessa forma potencializar a mudança de comportamentos, a melhoraria da auto-estima e auto-representação dos participantes bem como da relação inter-pessoal entre estes, tendo, por isso, objectivos pedagógicos e terapêuticos, na medida em que pretendia promover o auto-conhecimento, desenvolver competências pessoais e sociais e ampliar e enriquecer as experiências e pensamentos dos participantes. A actividade foi realizada individualmente, ou seja, cada participante intervinha individualmente sobre o objecto-poema. 

A actividade é composta por duas fases distintas, a primeira de realização ou produção, com a duração de quarenta a sessenta minutos, e a segunda  de partilha, diálogo e reflexão colectiva sobre os trabalhos realizados, com a duração de mais ou menos trinta minutos. 


REGISTO DA ACTIVIDADE:

Na presente versão da actividade, tal como na realizada anteriormente, os participantes foram convidados a intervir em conjunto, recorrendo a vários materiais disponibilizados, sobre o objecto-poema: caixa de dimensão média em cujo interior apenas se encontra numa folha colada no seu fundo a primeira estrofe do poema Tabacaria, de Álvaro de Campos, heterónimo de Fernando Pessoa: Não sou nada. / Nunca serei nada. / Não posso querer ser nada. À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo. 

No início da actividade foi pedido aos participantes que interviessem da forma que entendessem tendo em conta o objecto-poema, que partissem de uma relação com este, do que este suscitava em si próprios procurando agir criativamente sobre ele, transformando-o.  

Sendo a actividade realizada em grupo, exigia uma maior ou menor concertação entre as participantes. De forma espontânea surgiu  a necessidade de comunicarem as suas ideias, de pensarem em conjunto formas de intervir, de chegarem a acordo e agirem para um mesmo fim (colectivo) a partir da articulação dos diferentes contributos individuais. Cada participante, a seu tempo, foi encontrando a sua forma individual de contribuir para a transformação do objecto-poema. A forma como cada elemento conseguiu interagir com os outros e o grau de coesão do grupo pode ser um aspecto a ser analisado pelo dinamizador e participantes. Na situação em causa verificou-se, sem que de uma forma geral se perdesse a iniciativa individual, um esforço de articulação entre os participantes, de ideias e mesmo de tarefas. 










O objecto-poema após a intervenção das participantes:










A caixa manteve o seu formato, mas o vazio do objecto-poema, que é também a possibilidade de tudo como sugere o último verso do excerto do poema, deu lugar a uma trama de significados, interpretações, mensagens, sonhos, materializados pela escrita, a colagem e a associação inesperada de vários materiais.  


Após a intervenção seguiu-se um momento de partilha e reflexão sobre o que as participantes tinham realizado, sentimentos e pensamentos suscitados. Por motivos que se prenderam com a gestão do tempo este segundo momento da actividade não teve o desenvolvimento e aprofundamento desejado. 


ANÁLISE DA ACTIVIDADE:

"Não sou nada" apresenta-se como um desafio ao qual pretende-se que os alunos/participantes respondam o mais criativa e autonomamente possível, funcionando como uma espécie de dispositivo que tem como objectivo treinar e  desenvolver a acção interpretativa e criativa, ou seja não definida exteriormente ou à prior, a espontaneidade e intuição, a capacidade de expressão e concepção plástica bem como de diálogo, partilha e reflexão, potencializando dessa forma a capacidade de análise e sentido crítico, tendo como impulso ou base a relação, a interacção, que se estabelece entre o indivíduo (aluno/participante) e o objecto-poema e dos indivíduos entre si. 

O objecto-poema expõe uma oposição dialéctica entre o dentro e o fora, entre um ser nada exteriormente, um ser nada face a vastidão do universo, e o tudo interior, a possibilidade de tudo. Oposição expressa no excerto transcritos e acentuada pelo formato de caixa do objecto-poema, cujo vazio em relação com último verso interpela o aluno/participante desafiando-o a intervir, a ser (todos os sonhos do mundo?)... 

Procura-se, pela natureza artística, poética, do objecto-poema que a interação implique tanto um envolvimento pessoal como uma atitude reflexiva, aliando simultaneamente aspectos afectivos, emocionais, cognitivos e intelectuais. Procura-se que o aluno/participante estabeleça uma relação dialógica, ou seja, de interacção entre dois mundos de significado, o do indivíduo participante e o do objecto-poema, da qual resulta (síntese) concretamente um outro mundo de significados, o objecto-poema depois de intervencionada. A relação desejada ultrapassa a cognição (apreensão de informação) e a expressão de emoções que não pressupõem diálogo (Leontiev, 2011, p. 135), é uma relação de sentidos ou significados, uma relação estética, no sentido exposto por Leontiev, geradora de uma tensão que conduz ou é materializada na intervenção sobre o objecto-poema transformando-o. Essa tenção surge da interacção entre os significados contidos no objecto-poema e a estrutura de sentidos da personalidade do aluno/participante. 
Leontiev ao caracterizar a relação de tipo estética entre indivíduo e obra de arte, refere que este é levado a renunciar, temporariamente, à sua posição única pessoal (parcial) na tentativa de apreender o significado da obra de arte: "Para se poder assumir a posição do autor, uma pessoa tem de renunciar ao seu ponto de vista pessoal, transformando-o numa atitude estética que é essencialmente uma atitude de diálogo" (Leontiev, 2011, p. 132). Tal processo  possibilita o enriquecimento da percepção do mundo do indivíduo, a transformação e expansão da sua estrutura de sentidos, o quebrar de estereótipos e o estabelecer de relações com o mundo mais flexíveis, significativas  e orientadas para o futuro, que contemplam simultaneamente vários pontos de vista, múltiplos contextos e significados potenciais (Leontiev, 2011, p. 133). A arte, pela sua natureza polissémica, possibilita múltiplas interpretações, que podem não se anular reciprocamente, contribuindo antes para renovar o seu poder significativo, esse acumular de interpretações alternativas contribui para o processo de construção cultural que é esse partilhar de significados vivos, aí reside o seu potencial educativo.

Da relação com o objecto-poema que se deseja estética, tipo de relação que pode ter vários níveis de intensidade e profundidade conforme, utilizando a metáfora de Asmous, o cumprimento da sonda do marinheiro (Asmous, 1961, p.42, cit. por Leontiev, 2011, p.141), parte-se para a acção artística, a intervenção sobre o objecto poema, acção que envolve criar, fazer algo que está intimamente ligado às idiossincrasias do indivíduo  e que cujo extremo, o seu  grau mais elevado, está patente nas obras primas, mas que não excluí formas de criação menos complexas e elaboradas. A intervenção incorpora conhecimentos pessoais, a interpretação daquilo que se experienciou e a sua reorganização imaginativa materializada na intervenção. Processo que acontece com qualquer indivíduo, seja ou não artista profissional, com uma diferença que julgo ser de qualidade, na medida em que o artista profissional acumulou um fundo mais vasto e complexo de experiências combinado com um maior domínio dos meios que o permitem realizar a sua visão e uma intencionalidade mais consciente. 

Da intervenção artística parte-se para a partilha informal e descrição livre do que cada participante fez, sentiu e pensou. As abordagens poderão ir de um registo mais emocional para um mais reflexivo e crítico. Aqui o dinamizador/professor poderá intervir levantando questões sobre as respostas dos participantes ao desafio e as suas abordagens sobre as mesmas, no sentido de promover a reflexão e sentido crítico dos participantes. Mais uma vez estão em jogo as capacidades de estabelecer relações de sentido, de interpretar e criar significados como também de analisar aspectos formais dos objectos criados, através do diálogo entre os participantes e professor/dinamizador.

No contexto específico da actividade apresentada o papel do professor/dinamizador parece-me ser o de criar situações que sejam  suficientemente desafiantes que possam levar o aluno/participante a sair da sua zona de conforto, a questionar e ultrapassar estereótipos pessoais, a expandir a sua compreensão da arte, do mundo em geral, promovendo dessa forma o seu desenvolvimento pessoal. Não se trata de conduzir ou orientar a acção e pensamento dos alunos/participantes em direcção a uma compreensão ou fazer artístico que se julgue mais adequado ou acertado segundo uma concepção predefina de arte, mas antes proporcionar situações que permitam  aos alunos desenvolver por si uma compreensão e uma relação mais abrangente e profunda com arte e com o mundo, relação essa que por não estar predefinida poderá contribuir para formulação de novos conhecimentos e novas formas de relação com o mundo e, dentro dele, com a arte. 


ENQUADRAMENTO TEÓRICO:


"Põe-se naturalmente para o educador o problema de preparar desde a escola o cidadão que as circunstâncias reclamam, dando-lhe ao mesmo tempo todas as faculdades de iniciativa necessárias para que o mundo não pare e para que o indivíduo seja, não uma simples roda de máquina, não o passivo aceitador de tudo o que existe, mas em todas as suas actividades um homem desejoso de novos horizontes."

Agostinho da Silva, in "Textos Pedagógicos", 2000, p.235.




A concepção de uma actividade de carácter pedagógico, seja esta realizada num contexto educativo escolar ou não escolar, implica intencionalidade, ou seja, a identificação de objectivos e princípios que orientem a acção. Como afirma Dewey agir "com um propósito equivale a agir com inteligência, com consciência. Permite ter uma base sobre a qual observar, seleccionar e coordenar os meios de que dispomos e mobilizamos" (Dewey, 1913, Cap. VIII). O que, por outro lado, significa que as crenças, princípios e objectivos influenciam de forma determinante a acção pedagógica, influenciando os seus métodos e conteúdos. No que diz respeito à educação artística, ao longo da história ocidental, o seu carácter tem sido influenciado directamente pelas filosofias e teorias da arte, estando estas por sua vez relacionadas com uma determinada visão social (Efland, 1995, p. 25). Num esforço de sistematização Arthur Efland identifica 4 modelos de ensino artístico que têm dominado o ensino artístico ocidental e que apesar de serem mais característicos de determinados períodos da história, dependendo da instituição e mesmo dos professores, acabam por coexistir no tempo. São eles os modelos: mimético-behavorista, social-reconstruccionista, expressivo-psicoanalítico e formalista-cognitivo. Modelos que, como refere Efland, são mais do que possibilidades teóricas, são realidades históricas baseadas em tradições estéticas em conjunto com tradições pedagógicas, perspectivas sobre o papel da educação e da arte na sociedade (idem. p. 28). 

Vivemos num período em que, face à consciência da complexidade e ambiguidade da realidade e da existência humana, o pensamento e a acção humana, e a arte dentro destes, caracterizam-se por uma multiplicidade de propostas e abordagens relacionadas com o que Bauman denomina de individualização das socidades. Mais do que querer pertencer a um grupo ou movimento o indivíduo tende a cria a sua própria identidade, a definir e a redefinir a sua forma de ver os vários aspectos da vida, a trilhar o seu próprio caminho. Segundo Efland, exige-se que a educação artística seja também ela múltipla, que integre vários modelos e abordagens, não privilegiando um modelo único como verdadeiro em detrimento de outros. A única proposta válida, ou seja capaz de representar a natureza contraditória e diversa da arte, é a que integre vários modelos e abordagens adequados a conteúdos e objectivos diferenciados. Coloca-se aos professores e alunos o desafio da compreensão dessa mesma diversidade, das suas bases históricas e sociais, o que requer uma abrangente compreensão dos estudos críticos e históricos realizados. (idem. pp. 38,39).       

A actividade em análise compromete-se com o objectivo de promover o desenvolvimento pessoal, o desenvolvimento do ser humano entendido como “(...) presença no mundo, com o mundo e com os outros. (...) presença que se pensa a si mesma, que se sabe presença, que intervém, que transforma, que fala do que faz mas também do que sonha...” (Freire, 1996, p.18). O desenvolvimento humano faz-se de várias formas e envolve várias áreas do saber e da acção humana. 
São, pelo exposto anteriormente, identificáveis aspectos do modelo expressivo-psicoanalítico, modelo que relaciona a estética expressionista da arte que entende a arte como produto da imaginação do artista e de uma pedagogia centrada no indivíduo segundo a qual o conhecimento é uma construção individual. Em ambos é valorizado o papel da imaginação na aprendizagem, na formulação de novas construções, entendimentos  e perspectivas, entendidos como processos mentais para os quais são determinantes as emoções e sentimentos. Segundo este modelo a arte possibilita o desenvolvimento pessoal e o avanço cultural residindo aí o seu valor e papel terapêutico. A aprendizagem é entendida como um processo de integração pessoal. A construção de uma visão pessoal do mundo aproxima-se à criação artística como acto original, único. A validade da visão pessoal de cada um é avaliada pela sua consonância com a realidade, o seu valor, como o valor da arte está na medida em que conduz à realização pessoal de cada um. 
A actividade possuí também um carácter socializante baseado no trabalho cooperativo e numa aprendizagem individual construída na relação e diálogo com os outros num contexto e situação específicos. Características que se enquadram no modelo social-reconstruccionista, modelo que surge da relação entre uma estética pragmática e de uma concepção da educação como instrumento de reconstrução social, em ambos os casos arte e educação têm um valor ou papel instrumental. O ensino/aprendizagem é organizado em torno de situações centradas nas vivências. A verdade e o conhecimento não são considerados como absolutos mas antes emergem dos sucessivos encontros com a realidade, o seu valor ou utilidade é aferido de acordo com a sua maior ou menor aproximação à realidade permitindo consequentemente uma maior ou menor adaptação a esta.


PARA UMA INTEGRAÇÃO NO CONTEXTO ESCOLAR SEGUNDO UMA ABORDAGEM MÚLTIPLA E INTEGRADA DO ENSINO DAS ARTES:

Considero que a actividade proposta, bem como outras actividades da mesma natureza, poderia integrar o currículo escolar, nomeadamente do ensino secundário, constituindo não uma abordagem exclusiva mas parte integrante de um corpo variado de abordagens múltiplas conforme objectivos determinados e de forma a possibilitar aos alunos um contacto e um entendimento da arte na multiplicidade das suas facetas e valências, podendo abranger aspectos presentes também nos modelos mimético-behavorista e formalista-cognitivo. Esse corpo integraria cinco tipos de abordagens que se relacionam entre si e que cobrem os aspectos artísticos, artesanias, técnicos e científicos: a Produção, que envolve criar fazer algo que está intimamente ligado às idiossincrasias do indivíduo; a Reprodução, que se relaciona com o representar o visível recorrendo a abordagens múltiplas, e aqui é importante implicar os alunos na escolha dos temas ou objectos promovendo dessa forma a relação com os mesmos; a Percepção, que implica receber impressões sensoriais, diferenciar, seleccionar, processar essas informações e dar-lhe significado; a Interpretação, que envolve analisar e expressar entendimento noutro meio que não o da obra analisada, esta pode ser trabalhos realizados pelos próprios alunos ou obras de artistas e podem abranger várias formas de arte, nomeadamente a literatura introduzindo-se assim a ilustração e a narrativa gráfica; e a Reflexão, que pressupõe colocar em perspectiva, considerar, investigar em contextos históricos, sociológicos, psicológicos, etc. (Nielsen, 2007, p. 273). 
A actividade poderia constituir um ponto de partida para uma pesquisa e exploração plástica e intelectual em torno dos significados e relações estabelecidas pelos alunos a partir do objecto-poema, podendo a actividade assumir um tom mais positivo intitulando-se "todos os sonhos do mundo". 


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BIBLIOGRAFIA:

DEWEY, John
; Democracy and Education: An Introduction to the Philosophy of Education; ed. The Macmillan Company, Nova York, 1916; University of Virginia American Studies Program 2002-2003; disponível em: http://xroads.virginia.edu/~HYPER2/dewey/cover.html.

EFLAND, Arthur, "Change in the Conceptions of Art Teaching", in NEPERUD, Ronald W. (ed.) - Context, content and community in Art education: beyond post modernism, New York: Teachers College Press, 1995, pp. 25-40.


FREIRE, Paulo; Pedagogia da Autonomia, saberes necessários à pratica educativa; ed. Paz e Terra; São Paulo, Brasil; 1996.



LEONTIEV, Dmitry; "Funções da Arte e educação estética"; in FRÓIS, João P.(ed.), Educação Estética e Artística, Abordagens Transdiciplinares; ed. Calouste Gulbenkian; Lisboa; 2a ed.; 2011.

NIELSEN, Frede; "Music (And Arts) Education From The Point Of View of Didaktik And Bildung", in BRELER, Liora (ed.), International Handbook Of Research In Arts Education, Vl. 1; Springer, Dordrecht, Netherlands, 2007, pp. 263, 285. disponível em: http://213.55.83.52/ebooks/Social%20Science/International-Handbook-of-Research-in-Arts-Education.pdf

SILVA, Agostinho; Textos Pedagógicos, ed. Âncora; Lisboa, 2000.






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